segunda-feira, 19 de maio de 2014

Palavras de um padre a respeito da guerra (e da política...)

Meninos de coro barbados? Nos tempos da Conchita, isso já não choca...

Aos poucos tenho retornado ao meu ritmo ordinário e vou arranjando tempo para fazer mais leituras. Aproveitei para tomar ciência do que andam escrevendo a respeito da crise ucraniana e reparei que, apesar do mundo não parar e nos lembrar constantemente que o que parece muitas vezes não é, ainda mais no mundo da política, a maior parte das pessoas continua a formular ou reformular as suas convicções a partir de factos isolados, ao invés de olhar para o conjunto. Mais grave é a atitude daqueles que se fazem passar por grandes sabedores dessas coisas, procurando uma posição de equidistância de modo a ganhar pontos com as duas facções que vão surgindo da polarização das opiniões em torno da crise. A verdade é que mais não fazem do que lavar as mãos e aumentar a confusão. Precisamos estudar a Rússia para conhecê-la tão bem quanto conhecemos o Ocidente e  poder avaliar a posição interna do seu presidente, que é bem mais frágil do que parece. Nessa posição, é bom lembrar que a guerra, ainda mais quando consideramos o duplo desafio sionista/chinês que a Rússia deverá enfrentar nas próximas décadas, interessa, e o momento ideal é agora. Assim, fica a pergunta: por qual razão Putin estabeleceu uma linha vermelha bem clara na Síria? Não interessava a ele que o Ocidente se metesse em mais uma guerra, que acabaria por envolver o Irão e dificultar a vida das tropas ocidentais no Iraque e no Afeganistão, para depois desferir um ataque surpresa? Bom, essa é apenas uma questão entre dezenas que mostram que não é com umas declarações e algumas leis que podemos tirar conclusões a respeito de um assunto que é complexo até mesmo para os actores envolvidos, apesar de toda a inteligência que podem recolher.   

Com isso em mente, faço questão de cá deixar algumas palavras escritas há quase 500 anos pelo Padre Fernando Oliveira na sua Arte da Guerra do Mar. Talvez os meninos de coro aprendam alguma coisa. É bom lembrar que os nossos adversários e/ou potenciais aliados são mestres nessas artes e ninguém entenderá nada e poderá agir com segurança sem isso em mente:

Antes q me esqueça q~ro tirar h~ua duuida q~ algus escrupulosos  buscão nesta materea, da qual não fora muyto firme se o teuera de co~dição, mas não macostumo rir de nada, porq~vejo muytos risos e esses preualece~. Manha he de fracos e preguiçosos, buscar achaques pera nam fazer o que deue~ e lhes cumpre conforme ao prouerbio vulgar que diz. Achaques aa coresma por nam geju~ar. E Salamam diz. O preguiçoso por nam sair de casa, adeuinha que na rua estaa hum liam. Preguntam estes se he licito vsar de manhas na guerra, e armar celadas. As quaes assy se deuem pronunciar e nam ciladas, porque celada que dizer cousa encuberta e escondida diriuandosse de celare verbo latino que quer dizer encubrir, e cilada nam tem donde venha senam do costume vulgar e corruto. A mesma rezam tem pera se nomear a celada arma que cobre a cabeça quasi como gualteyra. Se he licito ou nam vsar na guerra de manhas, astucias, e dissimulações, e celadas, sam Thomaz o disputa, e conclue que sy, e tem rezam, porque sam estes documentos desta arte militar necessarios pera conseguir o fim della, collegidos da experie~cia que os home~s entendidos nella fazem como se faz nas outras artes/ os documentos dos quaes foram tirados, e se tiram hoje em dia do que os home~s nellas esprementam e entendem competir a seu fim e tençam, sem os quaes documentos e imitaçam delles nam se pode conseguir fructo das dictas artes, e sendo ellas licitas a doutrina e adminiculos dellas, sam licitos. Na artedo disputar todos os preceytos que ensinam arguir sam licitos, posto que pareçam ser importunos e que ensinam enganar, porque sem elles seraa essa arte manca e imperfeyta e nam saberemos desfazer os empecilhos daquelles que co ella nos querem conuencer. Na agricultura senam romperem a terra, se nam cortarem os ramos sobejos e arrancaremnas eruas brauias, senam armarem aos bestigos e os materem, nam haueraa criançam nem se colheraa fruycto, e para se colher he necessario fazer algu~as cousas que parecem ser mal feytas mas namno sam porque sam necessarias pera conseguir o fim da boa arte que vsamos. Esta arte da guerra he licita e necessaria, como fica dicto na premeyra parte/ pera conseruação da paz, e quietaçam e emparo da reepubrica, e a sua tençam de hauer victoria, porque sem victoria nam poderemos conseruar a justiça e paz que pretendemos, e sendo assy cumpre vsar de todos aminiculos que para isso conduzem e aproueitão. Hora poys per experiencia sabemos, nossa e doutros muytos, que as cautellas, e dissimulações/ e astuciosas manhas e celadas conduzem na guerra pera alcançar victoria, e cumpre vsar dellas, e sem ellas he riso fazer guerra, porque na mão estaa namvsando nos dellas, leuarem os imigos o milhor, e vencerem, e estragarem nossa quietaçam. Senam quanto seria milhor nam fazer guerra os que nam determinam vsar das manhas della, porque nam prouoquem seus contrayros a sanha, nem lhe dem causa a lhe fazerem os damnos acostumados nella. Milhopr seraa aos taes soltar em paz sua justiça, poys lhe nam parece bem fazer tudo o q~ cumpre pera a defender, e querella defender sem o fazer/ he o de que me quisere rir se fora de minha condiçam e mays porque me lembrou a deuaçam desaçazoada dos que haue~do descaramuçar se deciam dos cauallos a diser em giolhos senhas auemarias...

1 comentário:

  1. Eu não imaginei que conseguisse ler com rara clareza e prazer um texto de quase 500 anos. Tanto no estilo quanto no conteúdo, as palavras são muito interessantes. Lucidez e ironia na medida certa.

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