segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Da eficácia da tradição como bússola da política (2º parte)


O fenómeno que mencionei anteriormente, do qual afirmei serem reflexos as intervenções descabidas dos liberais monárquicos, é o uso da historiografia como arma de propaganda. Os grandes mitos que legitimaram os regimes contemporâneos começam ainda durante o renascimento, ganham impulso com a reforma protestante e são aceites como verdades por parte significativa da elite dos países católicos durante o iluminismo, contribuindo para isso a destruição dos jesuítas. Com o advento do liberalismo, acabam por contaminar a cultura popular por via da educação pública. Por toda a parte, à excepção do Reino Unido, onde um processo semelhante ocorreu prematuramente, se promovia a tomada do poder por grupos que depois reorganizavam as sociedades sob variações do que poderia ser descrito como o credo liberal, que, sucintamente, consistia na ideia de soberania popular, exercida através da representação, e no princípio da tripartição de poderes. Quanto a este último princípio, nasceu com a teoria da divisão de poderes de Montesquieu, que não passava de uma hipótese altamente abstracta a respeito da liberdade ainda encontrada no Reino Unido nas décadas que se seguiram à Revolução Gloriosa. Ainda que venhamos admitir que Montesquieu era honesto intelectualmente, afinal, havia sido iniciado, bastará olhar para o que se passou em todas as nações onde estes princípios vingaram para constatar que estava equivocado, a começar pelos EUA e a terminar no Reino Unido que lhe serviu de modelo, nações que encabeçam a lista dos abusos totalitários que cada vez mais caracterizam o desfigurado Ocidente.
Convém lembrar que Montesquieu conhecia o Reino Unido superficialmente e estava longe de compreender a sua “constituição não escrita”, tomando os sucessos anunciados pela bem sucedida propaganda dos grupos vencedores da Revolução Gloriosa como realidades. Não sei até que ponto isso se deveu à omissão ou ao simples desconhecimento e encanto pela novidade, fraqueza bastante comum nos homens, e terei que reler a sua obra e estudar a sua biografia em busca dessa resposta pois li o Espírito das Leis há mais de quinze anos e poucos detalhes da vida de Montesquieu me são conhecidos, e menos ainda lembrados. Seria compreensivo que este, ainda que não fosse desonesto, exagerasse na crítica à já demasiado centralizada monarquia francesa, tão próxima, e se encantasse por um semi-desconhecida sedutora como era o recém-formado Reino Unido, sem sequer ver no acto arbitrário da sua formação (Union Act), no crescente movimento das enclosures e no ilegítimo monopólio da emissão monetária pelo ainda jovem Banco de Inglaterra, instituição privada cujos nomes dos proprietários eram mantidos sob sigilo e pairava acima de qualquer escrutínio por parte dos tais poderes descritos, factos que desmentiam categoricamente as suas ilusões. E nem citarei a odiosa discriminação contra os católicos, submetidos a um estado de marginalização pior que o de muitos súbditos cristãos de soberanos maometanos, ou da existência de uma igreja de estado, o que já é mal, chefiada pelo soberano, o que é péssimo.
Os modelos que surgiram a partir da admissão dessa teoria como descrição exacta de uma realidade aplicável a qualquer sociedade, não passavam assim de abstracções baseadas em observações imprecisas. E o que vemos hoje relativamente a essa suposta independência de poderes nos estados liberais? São independentes só em nome, ou melhor, são independentes apenas do tal povo “soberano”. Na realidade, como sabemos, estes poderes são dominados por um mesmo grupo social. Independência e equilíbrio de poderes existe quando há vários poderes e estes não são dependentes de um mesmo poder, servindo assim de salvaguarda contra os abusos àquilo que é a ordem por um dos poderes. No estado liberal não se verifica isso a não ser na teoria, que serve de véu para o seguinte facto: todos os poderes artificialmente criados pela revolução liberal foram concebidos pelo mesmo grupo social, que sobre eles sempre exerceu um controlo muito eficaz, mesmo que imperfeito.
Ao criar o estado nacional centralizado e dividido em poderes fictícios sobre os escombros dos antigos poderes, submetidos pela força bruta das armas e pela sedução que sobre muitos exerceu o dinheiro, poderes esses que reflectiam a estrutura da realidade em conformidade com uma certa tradição, ganhou o poder mais forte em detrimento dos mais fracos, isto é, o poder que podia agir a nível “nacional” cresceu em detrimento dos poderes que só podiam agir a nível local, a não ser quando encontravam alguma liderança que os coordenasse. Daí a acção de destruição do poder da Igreja, exercida por todos os estados liberais, e o isolamento a que votaram o Rei, que agora passava a ser apenas um instrumento de legitimação - e expiação - desse poder, por vezes associado voluntariamente, por vezes coagido pelo receio. Dessa maneira, ficava o povo atomizado em indivíduos cada vez mais independentes entre si e cada vez mais dependentes do estado, o que gerou um ciclo vicioso: quanto mais forte era o poder político, mais este atomizava os cidadãos, e quanto mais atomizados estavam os cidadãos, mais estes precisavam do estado para se defender.    
Dito isto, vale a pena perguntar: o que aconteceu em Portugal desde a imposição do liberalismo? Destruiu-se o poder das famílias, dos municípios, da Igreja e das antigas corporações, centralizou-se o poder e a administração, beneficiando os monopolistas em detrimento da quase totalidade da população, desarmou-se o português mentalmente, com uma educação castradora, e também materialmente, retirando-lhe gradualmente o direito à auto-defesa, e chegamos a uma situação onde poucos detém quase toda a riqueza real e a maioria esmagadora do que chamamos de classe média é proprietária de hipotecas, que lhe dão a ilusão de ter sido poupada ao processo de proletarização da sociedade, diferindo apenas na aparência do resto dos assalariados. A vida dos que desejam escapar à escravatura do emprego e não aderem aos esquemas do regime, que oferecem algumas possibilidades de acesso a círculos mais próximos do verdadeiro poder, e por isso privilegiados, transformou-se num pesadelo kafkiano, que a cada dia, graças a uma legislação em crescimento perene que resulta da organização do parlamento em moldes liberais, torna-se mais semelhante ao que deve ser o seu modelo de inspiração: o inferno. O parlamento, a tal casa do povo, representa os interesses dos que mandam nos partidos, e nada mais. É a consequência de termos políticos profissionais, ainda que eleitos, e não poderia ser diverso. Para piorar o quadro, não temos sequer as salvaguardas que ainda permitem alguma reacção em certos países do Norte onde, apesar da resistência dos seus regimes, ainda podemos ver fenómenos como o UKIP. Nosso sistema eleitoral, a bem da verdade, é dos mais eficazes do mundo se tivermos em conta os objectivos dos que o criaram. O seu domínio da educação e dos meios de comunicação, por outro lado, mantém as pessoas na ignorância desses factos, e a sua discrição na acção faz o resto.
Continua.

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