quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Da eficácia da tradição como bússola da política (3º parte)





Diante desses factos, que o estudo aprofundado da História e a observação do presente revelam, a crença liberal na teoria da divisão dos poderes e na ideia de soberania popular como solução para um problema por ela criado, e dois séculos de crescente fracasso disfarçados pelo desenvolvimento tecnológico, como se este fosse uma exclusividade destes tempos e não o resultado da acumulação de conhecimentos práticos, serve de medida da separação entre a percepção e a realidade na mente dos seus advogados. 




Encerrados nesse esquema mental, os liberais enganam-se relativamente aos tradicionalistas ao espelhar neles esse vício particular: pegar num modelo abstracto construído a partir de observações imprecisas de outro contexto político e transplantá-lo, sem sequer estudar em profundidade as sociedades que serviu de inspiração. Para estes cavalheiros, a Suécia, o Reino Unido e outras tantas nações são - ou foram - vistas como exemplares, e esses exemplos coincidem - ou coincidiram - com as nações em voga nos media, que não passam de meios de propaganda. Essa qualidade, não por acaso, assemelha liberais a comunistas e socialistas. O resultado disso é sempre o mesmo: quando os efeitos negativos dessa tolice tornam-se evidentes e não podem ser negados, culpa-se o povo. Seria menos absurdo, por incrível que pareça, cometer suicídio em massa e entregar o país a um conjunto de pioneiros suecos, britânicos ou alemães para o refundarem de acordo com as suas instituições actuais. Olhando para as tais nações exemplares, garanto que o resultado seria o fracasso. A demografia é um dos aspectos que provam essa afirmação.  




Portanto, daí acreditarem os liberais monárquicos que os tradicionalistas desejam uma simples readopção dos antigos usos e costumes, tal e qual eram. Porém, para começar, isso esbarraria num problema: levando em conta que os usos e costumes se transformaram ao longo dos séculos anteriores à imposição do liberalismo, adaptando-se a uma sociedade que nunca estagnou, teríamos que escolher um momento histórico como o ideal. Até hoje nunca ouvi um tradicionalista falar nesses termos, que, pelo contrário, são comuns aos liberais. Mas ainda que se fizesse isso, teríamos que ultrapassar outro obstáculo pois o que sabemos de cada momento do passado é apenas um fracção da realidade, sendo assim, seria impossível replicar essas instituições com sucesso pois não conhecemos bem o mundo onde elas se inseriam e nem sequer conhecemos essas instituições com precisão. 



Admitindo que os tradicionalistas fossem alucinados a esse ponto, como provei serem os liberais, cujo passatempo predilecto, como todos sabemos, é traduzir constituições, não chegariam eles a ser tão alucinados quanto os liberais pois é menos insano tentar copiar o que por cá foi aplicado com sucesso do que tentar aplicar o que noutras nações só é percebido como sucesso se aceitarmos acriticamente a propaganda que nos é impingida. 




Mas, ao contrário do que os propagandistas e ideólogos do liberalismo pregam, não é isso o que deseja um tradicionalista. Muito pelo contrário, ele é em primeiro lugar alguém que observa a realidade e interessado na História, de onde soube tirar lições que o levaram a transcender o mundo do pensamento metonímico em que vivem enclausurados os descendentes das luzes. O tradicionalista estuda com abertura de espírito, sem intenção de usar esse conhecimento como justificação de uma qualquer filosofia da História, e sabe que a mudança e a incerteza, assim como a permanência e as certezas, são elementos a ter em conta. Ele sabe por isso, ainda que intuitivamente, que há uma tensão natural entre a mudança e a continuidade e que qualquer tentativa de se negar ou anular essa realidade terá efeitos catastróficos. E qual é a postura liberal? Bastará olhar para a política interna e externa praticada pela potencias liberais e para as suas várias faces ao longo dos tempos, desde Spencer até Fukuyama, para se descobrir a resposta. 




Por isso, quando fala em retornar à tradição política portuguesa, o que o tradicionalista faz é sugerir o estudo e a utilização do conhecimento político acumulado por séculos de experiência, ao invés de condená-lo ao esquecimento em nome de modismos importados de acordo com os gostos da época. Nesse conhecimento ele não vai buscar soluções prontas, mas apenas os princípios que permitiram aos portugueses se adaptar com sucesso a séculos de mudanças, conseguindo ainda transformar uma nação periférica no farol da civilização ocidental.




E que princípios eram esses? Entre os vários que podemos enumerar, sublinho a descentralização política, administrativa, militar, judiciária, fiscal e económica, em maior ou menor grau de acordo com a questão e o tempo, a tradição como fonte do direito e a substituição da ideia de lei inerente ao direito romano pelos usos e costumes, que, como todos sabemos, podem cair em desuso ou deixarem de ser costumes. Diante do fracasso da proposta liberal, que depois de destruir as instâncias onde o individuo estava inserido - e se protegia - em nome de um suposto individualismo, permitiu que o estado o esmagasse sem nenhuma resistência eficaz, como poderão os liberais honestos não reconhecer, depois de estudos sérios, que o ideal liberal, que só existe em propaganda, é melhor alcançado num quadro semelhante ao que tivemos enquanto monarquia tradicional?




O liberalismo, reconheço, ganhou forças entre muitos ingénuos em virtude de um mal do qual padeceu a monarquia sob influência de ideias estrangeiras, o absolutismo, mas o tal “absolutismo” em Portugal não passou de um tigre de papel. Aos reis era fácil opor resistência e impor uma vigilância eficaz, portanto, o clamor contemporâneo contra os seus abusos serve mais de prova da capacidade de controlo e resistência da sociedade de então do que do poder alcançado pelos reis, sempre limitado. De acordo com estimativas feitas a partir de cálculos para outras nações, a tributação da coroa em Portugal não passaria de algo em torno de 4% do PIB da altura, enquanto o número de "burocratas" estava aquém dos 5 mil. Também a força coerciva da coroa era limitada pela organização militar do reino, que deu origem ao sistema de três linhas. O povo estava relativamente bem armado, apesar do abrandamento do espírito marcial durante o relativamente pacífico século XVIII, mais ainda assim, não fosse o confisco e a destruição de armas pelas forças invasoras francesas no século seguinte, teria podido desbaratá-las com muito mais vigor e muitos menos perda para o reino e, quem sabe, resistir mesmo à invasão. Mas este é um tema que aqui não cabe.




Tudo mudou com o liberalismo. A partir daí, estávamos diante de um estado todo poderoso que encarnava uma ideia de soberania que, justificado por ela, centralizou toda a vida da nação, impondo regras uniformes por toda a parte e acabando aos poucos com as bases dos poderes locais, esvaziados do melhor da sua juventude, que agora buscava as oportunidades acrescidas na capital. Como sabemos, tal estado foi imposto pela força, com recurso à intervenção de potencias estrangeiras, e só por isso vingou, tal e qual em Espanha e no reino das Duas Sicílias, para ficarmos apenas pelos contextos mais próximos e familiares. 

Continua.

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