sábado, 5 de abril de 2014

Divagações sobre a história e o liberalismo.

É assim que ficamos ao tentar imitar os bretões.


Durante anos me inclinei para o liberalismo, mas a historiografia liberal nunca me convenceu, facto que replicou a minha relação com a historiografia socialista e comunista nos tempos em que me voltei para essas ideologias. Na verdade, era mais um ecléctico do que um doutrinado, o que me permitiu aos poucos reconhecer as falhas graves dessas ideologias sem que acabasse por jogar tudo, ou melhor, o que aprendi de positivo, fora. Reconheço que muito aprendi com o marxismo, apesar de abominá-lo, no que toca a análise do papel revolucionário do liberalismo, e com as várias escolas liberais, no que toca a ciência económica, apesar da constatação que os acertos do liberalismo em economia são mais tautológicos do que geniais ou sequer originais.

Quanto à historiografia liberal, sempre a vi como uma imagem recortada de uma realidade sobre a qual tentava lançar o véu da omissão, tal e qual a historiografia socialista, mas de forma menos intensa. As revoluções liberais foram impostas por minorias mobilizadas e quase sempre foram seguidas por medidas que entravam em contradição com as próprias bandeiras defendidas, a começar pela defesa da propriedade privada e da liberdade de consciência, bem o sabia, mas isso me parecia algo relativamente inócuo à luz do que então sabia, afinal, ainda estava longe de conhecer tantos factos de memória que me fosse possível estabelecer as "conexões" que me permitem hoje olhar para além das miragens a que chamamos ventos da história, espírito do tempo ou mão invisível, distracções eficazmente lançadas pelos fumígenos da sociedade massificada, ou seja, os meios de comunicação de massa e a educação centralizada.




Porém, aos poucos notei graves contradicções entre o liberalismo enquanto teoria política e o liberalismo enquanto teoria económica, começando pela questão do livre comércio internacional e da sua acção corrosiva em relação ao que, em teoria, servia de salvaguarda máxima das liberdades individuais: a soberania popular. O facto de nunca ter deixado de prestar atenção aos aspectos marciais da vida em sociedade me ajudou a compreender isso rapidamente e logo a seguir fui o aos poucos constatando as graves "incoerências" das ideias de soberania popular, representatividade, divisão tripartida de poder e do direito positivo, chegando à conclusão que muitos dos liberais, apesar da sua sinceridade, não puderam identificar os perigos inerentes à criação do chamado estado moderno, sobre o qual logo vieram a perder o controlo à medida que o indivíduo, que aos poucos ía sendo atomizado em detrimento das famílias e dos povos locais, era esmagado por forças contra as quais nada podia e se virava para o próprio estado, o grande monstro, em busca de protecção, gerando um ciclo vicioso que nos trouxe cá, ao mundo das polícias secretas, das câmaras omnipresentes, da população desarmada, da brigada de intervenção, do pão e do circo, da imbecilidade diplomada, do estado revolucionador dos costumes, do poder secreto das seitas, dos atentados de falsa bandeira e do desaparecimento de pessoas que enxergam essa realidade mas não se calam.

Mas voltemos agora à historiografia liberal, que muito mais do que qualquer teoria abstracta, legitima e fundamenta a ordem liberal sobre a qual o admirável mundo novo vai sendo construído em oposição a um passado mítico terrível, de escravatura, intolerância e ignorância selvagem. Um dos temas a ela caros que mais nos toca, como lusos e ambas as margens do Atlântico, e não só, é o do suposto conflicto entre dois "modelos": o cosidetto mercantilismo patrimonialista ibérico e o que poderíamos chamar de proto-liberalismo anglo-holandês. O efeito disso sobre a nossa percepção dos presentes problemas e sobre a nossa capacidade de resolvê-los, constato, é nefasto, pois não são poucas as pessoas de valor que, enganadas de alguma maneira, desperdiçam energias a defender causas suicidas e aumentam o grau de confusão em que vivemos.

Como ex-anglófilo, ainda que continue a nutrir simpatia pelos povos bretões, que sei bem separar das elites que sugam as suas energias, e ainda por cima conhecendo bem a mentalidade holandesa, afinal, passei um tempo significativo da minha vida adulta nos Países Baixos e fui introduzido em meios pouco acessíveis por um golpe da fortuna,  para dizer assim, sinto-me bastante confortável para abordar o tema de uma perspectiva pessoal, mais baseada naquilo que vi, ou li e constatei ser verdadeiro, do que em falsas ideias espalhadas por obras de propaganda que sugerem respostas fáceis para problemas que transcendem aquilo que um homem pode apreender pela simples vivência, exigindo, para além da experiência, uma ampla leitura e abertura de espírito. Quando falo em abertura de espírito, com isso quero dizer a capacidade para abandonar as ideias que não se ajustam ao mundo ao invés de se apegar a elas, seja por insegurança perante a ideia de admissão do desconhecimento ou, o que é muito pior, por vaidade, fraqueza a que muitos dos que enveredam pelo mundo da cultura sucumbem, ou que os impulsionam a enveredar por essa via. Tanto faz! O resultado é o mesmo e não sou psicólogo. E por falar nisso, deixo claro que também não sou historiador, mas apenas um, digamos assim, apaixonado.

Retornando ao liberalismo e à historiografia liberal, abordemos o mito da competição entre os dois modelos que disputaram o Atlântico. Ao contrário do que afirma, constatei que nunca fomos uma potência monopolista ou particurlamente "estatista", a não ser em períodos em que fomos intoxicados pela influência estrangeira, como no consulado de Pombal, cuja influência do que observou e viveu em Inglaterra foi determinante, ou em que estivemos atrelados a outras potencias, como na época da União Ibérica. Se a navegação para certas zonas foi regulada, o foi por  questões militares, afinal, éramos nós que garantíamos a segurança da navegação e abrimos o comércio do Oriente à Cristandade, por razões que transcendiam o mero lucro, apesar de não rejeitarmos a actividade comercial (lembrem das constantes reclamações dos Vice-Reis da Índia e das sucessivas medidas para promover a vida militar em desfavor da actividade mercantil), pagando um alto preço por isso. Estrangeiros, tanto ao nível de investidores como de armadores, para não falar a nível dos indivíduos, sempre estiveram presentes nas nossas navegações e zonas de comércio. Nesse ponto, os espanhóis eram mais restrictivos do que nós, mas estavam longe de serem os exclusivistas que anglos e holandeses heréticos apontam, como prova a larga presença de estranegriso, particurlamente italianos e alemães, nos seus domínios.

Quanto a nós, a fé católica foi quase sempre a condição sine qua non para a participação em tal empreendimento, especialmente depois da Revolução Herética. Mas como não ser quando a Revolução Herética lançava quase toda a Alemanha em guerras civis intermináveis, promovendo destruição e massacres, pondo a civilização cristão em risco em todo o Norte da Europa, e isso numa altura em que o triumphante Império Otomano ameaçava chegar ao coração da Europa? Não fosse pela bravura espanhola e italiana no Mediterrâneo, pela coragem épica dos portugueses no Índico e pela tenacidade dos alemães católicos da Áustria, os revolucionários heréticos teriam conseguido um feito que faria inveja a Dário: submeter a Europa toda às hordas asiáticas!

É verdade que existiam monopólios estatais sobre alguns poucos productos, porém, levando em conta que a taxação era quase nula e a defesa dos domínios contra os saqueadores heréticos, entre outras ameaças mais antigas, implicava gastos tremendos, o efeito do aumento dos custos na economia ficava muito aquém não apenas do que hoje sofremos devido aos monopolios privados e estatais, para além da perda de tempo com rotinas burocráticas idiotizantes, mas até do que sofriam os habitantes de outras nações na altura, como na aclamada Inglaterra, onde a população expulsa do campo no processo de confisco conhecido como enclosures, quando não se sujeitava à escravatura do trabalho em centros urbanos lúridos como Londres, se vendia para os novos exploradores dos novos mundos e era exportada, ou acabava ainda pior graças às caridosas leis da pobreza da era Tudor em diante, tão ao gosto do protestantismo. 

Vejamos agora o caso do nosso "império" oriental. Havia ali direitos alfandegários modestos em certos portos, na casa dos 3 a 7% ad valorem, e alguns productos cujo envio para o reino eram monopólio da coroa, como a pimenta do reino, mas, excluindo uma fase inicial de estabelecimento do império, que não durou mais do que três décadas, esses productos constituíam uma fracção menor do nosso tráfico, ficando a maioria em mãos de privados e constituindo o comércio intra-asiático a parte do leão do comércio em mãos portuguesas. Havia o tal regime dos cartazes, mas por outro lado havia a segurança proporcionada pelos portugueses contra os piratas e o regime só era aplicado em certas zonas e rotas, ficando a maior parte do tráfico livre. No Golfo do Bengala, a liberdade de acção era enorme e, mesmo em portos como Malaca, a concorrência de outros portos vizinhos, como Achém, servia de contrapeso a quaisquer abusos fiscais.

Os portugueses se transformaram no elemento dominante do comércio asiático, mas jamais o monopolizaram ou destruíram a concorrência local, competindo com mercadores nativos de várias origens e religiões, não podendo assim exercer, ao contrário do que afirmam, um domínio economicamente opressivo pois havia limites impostos pela existência desses competidores, e o mesmo se dá no comércio com a Europa pois as rotas terrestres não deixaram de existir, mas graças à iniciativa portuguesa, deixaram de monopolizar o tal comércio em favor dos que mantinham boas relações com os otomanos. Por outro lado, o "império formal" estava longe de ser o "império de facto". Voltando ao Golfo de Bengala, ali os portugueses agiam mais como mercadores individuais, desgarrados, do que como representantes da coroa ou de qualquer instituição. Muitos conhecem os exemplos de aventureiros como Filipe de Brito ou Diogo Veloso, mas poucos ouviram falar de comerciantes e armadores de sucesso por lá instalados, como Manuel Teixeira Pinto ou os irmãos Ledo de Lima, que numa época cuja visão predominante nos faz pensar que os portugueses debandavam em massa e se tornavam "overloopers" ao serviço das companhias de comércio inglesas e holandesas, entre outras, possuíam cabedais significativos e lideravam comunidades de mercadores capazes de erigir fortificações em cidades como Negapatão sem auxílio da Coroa. E nem imaginamos o que se passava em certas rotas não oficiais, como as que ligavam as zonas onde estavam os portugueses a Manila.

Pelo que se pode apurar dos trabalhos historiográficos baseados em estudos locais, para além da literatura não histórica, como as descrições de viagens e os romances,  os portugueses e as suas redes informais foram de vital importância até o primeiro quartel do século XIX, perdendo apenas nesse século, o século do liberalismo e do "livre comércio", em teoria quase sempre e na práctica só quando interessava à potência naval e financeira dominante, o seu papel fundamental, até como língua franca. O processo por detrás disso fornece ferramentas que nos permitem enxergar para além do véu historiográfico lançado sobre nós, não apenas por estrangeiros comprometidos com a propaganda herética ou liberal, mas sobretudo pela acção de conterrâneos encantados pelo fascínio provinciano do estrangeiro idealizado. Ao mesmo tempo que o nosso liberalismo nos levou à bancarrota escancarando a economia numa altura em que estávamos fragilizados por uma invasão brutal, que por cá teve um efeito bem mais devastador que noutras partes do velho continente, e guerras civis que em nada contribuíram para a retomada da normalidade, para além do incentivo à ociosidade que uma eocnomia baseada no confisco das terras e na especialização em certas culturas com mercado garantido forneciam, isso num quadro de crédito fácil e mão de obra "libertada" pela revolução operada na propriedade fundiária, ele foi bem pouco liberal no que toca a acção das outras nações ditas liberais.

Como exemplo, lembremos a evolução da economia britânica a partir do século XVIII, que ao mesmo tempo que gozava de condições especiais de abertura para os seus productos em mercados onde as condições locais lhe davam grande vantagem, como no Portugal do pós-Tratado de Methuen, onde a mão-de-obra encarecida pela emigração para as Minas Geraes e pela abundância do ouro, a falta de vantagens comparativas em relação à Inglaterra no acesso à matéria-prima e as condições topográficas que encareciam drasticamente a construção de vias de comunicação e dificultavam tremendamente o sucesso da actividade industrial (compare isso com as condições topográfias fluviais dos Países Baixos ou das zonas dinâmicas do Reino Unido ou do Norte da Europa, ideias para a construção de canais, e pensem na demografia), e nem vou citar a práctica do dumping, soube bem usar de meios para monopolizar o domínio das técnicas industriais, chegando ao ponto de enviar agentes para outras nações com a intenção de sabotar os engenhos (lembremos que em Portugal, por altura das invasões napoleónicas, as tropas inglesas destruíram muitas das fábricas portuguesas) e usou da força para evitar a concorrência, como fica claro nos Navigation Acts e nos Calico Acts. Outro facto peculiar a lembrar é que com a batalha de Plassey, em que o agente da Companhia das Índias Orientais Britânica, Robert Clive, conseguiu a expulsão dos franceses da Índia e garantiu a futura conquista da sua quase totalidade em poucas décadas, o que daria a base material para um controlo nunca antes exercido sobre a economia do subcontinente, conhecemos bem a opressão a que gradualmente foram submetidos os locais, que só fez aumentar gradualmente e continuou durante o período do Raj.

A Holanda, em termos de violência contra a propriedade e contra a dignidade dos povos, não ficava muito atrás do Reino Unido em terras do Oriente, ou melhor, até o superava. As populações locais tinham razões de ódio mais que justificadas contra a Companhia das Índias Orientais Holandesas, cujo acrónimo (VOC), mais tarde, foi associado à antiga expressão cry havoc não por acaso, já que um dos seus métodos de gestão favoritos, para além do genocídio das populações católicas que ofereciam perigo, como se deu em várias partes do Oriente, desde o Japão ao Ceilão, era a destruição da agricultura das áreas que não podia controlar ou cuja oferta depreciava os preços por ela praticada. Mas essas técnicas, tão adoradas pelos nossos queridos irmãos protestantes, expeditos em lançar as piores acusações contra os ibéricos (la leyenda negra), não se ficaram pelos primeiros tempos da sua "entrada" no Oriente. Recomendo a todos uma leitura pouco usual entre leitores lusófonos, o livro Max Havelaar: Or the Coffee Auctions of the Dutch Trading Company, do escritor holandês Multatuli, ou melhor, Eduard Douwes Dekker. 

Deixemos o Oriente e nos voltemos para as Américas. Todos já devem ter ouvido alguém a fazer discursos em torno do subdesenvolvimento material brasileiro em relação ao americano, afirmando que o nível de desenvolvimento americano se deve ao facto das treze colónias terem sido colónias de povoamente ao contrário do Brasil, que foi uma colónia de exploração... Em primeiro lugar, acho estranho que os portugueses estabelecidos no Brasil fizessem desde cedo magníficas casas em pedra e inaugurassem dinastias fixadas na terra que enobreceram os seus nomes em feitos épicos contra os mercenários da Companhia das Índias Ocidentais Neerdelandesas, isso quando os primeiros ranhosos calvinistas viviam em cabanas ridículas e lidavam com pragas de piolhos na costa americana, chegando a passar fome e a recorrer ao canibalismo, e isso num ambiente semelhante ao que tinham deixado para trás nas terras setentrionais da Europa! Ainda bem que não tentaram se fixar nos trópicos, caso contrário, teriam sido apresados e transformados em gado de pasto pelos tupiniquins e tupinambás.

Enquanto no Brasil, para onde o foralismo português foi transplantado, a primeira tentativa de monopolização do comércio exterior foi imposta pelo chamado domínio holandês, que em verdade não passou do domínio monopolista por uma empresa cotada em bolsa com um exército e uma marinha de guerra privada, empresa essa que depois de corrida do Brasil fundou o que viria a ser Nova Iorque, nos EUA houve a colonização e/ou exploração por companhias monopolistas desde o príncípio e até os dias da independência, como se pode atestar numa análise da Companhia da Virgínia, para falarmos nos obscuros primórdios, ou dos direitos monopolistas da já citada Companhia das Índias Orientais Inglesa, que ainda adquiriu, às vésperas da independência, o monopólio do comércio do chá, facto que veio dar origem a um episódio farsesco promovido por aventais transformado em mito fundador. Mas não tirem daí conclusões rápidas, afinal, a coisa é ainda mais complexa e os próprios accionistas da famosa companhia tiveram um papel importante na "independência americana". Por falar nisso, sugiro que investiguem a bandeira da Companhia das Índias Orientais Britância adoptada em 1801.

Outra instituição que marcou a experiência da América, refúgio da população expulsa de Inglaterra pelo incipente capitalismo do confisco, em relação à colonização lusa a Ocidente foi a escravidão branca, praticada contra aqueles que não tinham recursos para pagar a viagem, experiência tentada no Brasil, de forma velada, já na época liberal, por iniciativa de famoso e filantrópico senador (Nicolau Vergueiro). Essa deu para o torto e logo o governo prussiano proibiu a emigração para o Império fundado nas Terras de Santa Cruz. Mais tarde, a título de curiosidade, tentaram fazer o mesmo recorrendo a coolies chineses, contactando o famoso comprador Tong King-Sing, imitando a experiência civilizacional dos holandeses e ingleses na Guiana. Mas as originalidades americanas não ficavam por aí. O poder real exercido pela coroa britânica sobre os colonos era tal e qual o que proclamavam, no seu humanismo, ser exercido pela inquisição lusa. Poucos sabem, mas o maçom Benjamin Franklin, por exemplo, exerceu um cargo na administração colonial que lhe dava, entre outras prerrogtivas, o direito e o dever de abrir as cartas dos colonos. Enfim, a CIA era apenas uma questão de tempo e parece estar nos genes da elite daquela nação.

A realidade é muito mais complexa do que nos querem fazer crer os historiadores liberais e socialistas e não é nos apegando às falsas imagens por eles divulgadas que vamos escapar aquilo que tem sido o maior inimigo do nosso progresso moral e intelectual: a nossa tendência em querer resolver os nossos problemas recorrendo à mágica, nesse caso, imitando o que acreditamos ser a mandinga, ou mojo, dos gringos. Enquanto fizermos isso, continuaremos perdidos e seremos alvo do desprezo geral. Ninguém aprecia imitações.

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