Um dos mitos que sempre me intrigou foi o da suposta inaptidão dos portugueses para a guerra. Quanto mais estudava o mito, mais intrigado ficava com a sua origem, afinal, nada corroborava tal coisa, especialmente quando confrontava a história dos portugueses com a de outros povos. Em todos os episódios dignos de nota em que portugueses lutaram, muitas vezes até por causas estranhas ao nosso povo, notei que a inferioridade numérica exorbitante foi uma constante na nossa história militar e que jamais nos sentimos intimidados pelos números, ao contrário do que verificamos hoje. Ao ler Vegécio, reparei na semelhança do espírito que nos guiava com o espírito dos romanos, assim como nas diferenças. Se por um lado preferíamos exércitos pequenos e bem preparados, tal e qual os romanos, por outro éramos ridículos a nível demográfico relativamente a todos os oponentes, ao contrário dos romanos. Portugal, como ficou provado em Alcácer Quibir, não podia se dar ao luxo de uma Batalha de Canas.
Ao cruzar esse facto com a temeridade com a qual Portugal se lançou contra os seus inimigos, temeridade que não indicava insanidade, mas sim uma segurança ímpar diante da adversidade e da precariedade da existência humana que somente uma fé bem fundamentada pode proporcionar, evitando assim o erro clássico de Sabinus em que quase todos os homens, especialmente os que vivem entre as nuvens, têm caído, é díficil manter o moral elevado diante do quadro oferecido pela porção da juventude influenciada pelas modas. Está mais do que na hora de voltarmos a mostrar aos jovens que há vida para além dos vídeojogos, da televisão e das engenhocas ridículas que inventam a todo o momento, e que a vida pode ser muito mais interessante do que a vidinha pequeno-burguesa que a sociedade do empreguinho e do respeitinho ao fiscal oferece. Para isso, contudo, será mais uma vez necessário buscar inspiração no passado.
Assim, nada como lembrar um episódio edificante, que mostra que nossos avós, ao contrário de nós, tão moderninhos, olhavam para aqueles a quem hoje lambemos as botas com desprezo, e que os avós daqueles a quem lambemos as botas hoje sabiam que os nossos avós estavam certos em desprezá-los.
Em 1607, uma esquadra holandesa partiu para o Índico, aparecendo em frente à fortaleza portuguesa, descuidada, mal artilhada, precariamente municiada e guarnecida por menos de 80 homens, com onze naus, abundante artilharia e cerca de 1500 homens de armas. Os holandeses não deram trégua e ceifaram a vida de muitos portugueses com a sua artilharia, especialmente com o fogo de metralha por cima dos muros. Apesar das dificuldades, a tenacidade dos portugueses foi tanta que os próprios holandeses propuseram um cessar-fogo, pedindo para parlamentar com os lusos.
Sobranceiros pois seguros da sua força, os holandeses, como era habitual, tentaram solapar o moral dos portugueses afirmando que tinham muita pena de não encontrarem mais portugueses com valor como existiam antes, mas apenas uma sombra dos seus antepassados. Diante disso, o comandante português não hesitou a propôs uma solução para a questão ao comandante holandês: este escolheria 50 dos seus melhores homens para lutar contra 25 portugueses. Ao contrário do que as suas palavras iniciais nos levariam a crer, o comandante holandês declinou a oferta.
Recomeçadas as hostilidades, apesar da superioridade, nada conseguiram os holandeses apesar de dois meses de cerco e fogo constante sobre os portugueses, que em surtidas que em nada ficariam a dever às mais audazes acções das melhores tropas especiais contemporâneas, destruíram as máquinas de cerco do inimigo, enviando muitos hereges para o inferno e, o que é mais importante, inutilizando muitas das suas peças de artilharia. Numa dessas acções, cerca de 20 portugueses conseguiram se livrar do perigo ao se bater contra algumas centenas de inimigos que os surpreenderam e soaram o alarme enquanto estes destruíam enormes rampas de assédio, voltando victoriosos à fortaleza.
Levantado o cerco holandês, uma outra frota batava por ali passaria e tentaria a sorte três meses depois. Teve o mesmo destino. Depois de muitas tentativas, desistiram os holandeses de tomar Moçambique e se decidiram por fundar uma colónia no Cabo, pelo qual os portugueses nunca manifestaram grande interesse.