sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Qualidades romanas que deixamos de cultivar



Voltei a pegar numa obra que li ainda imaturo, despreparado para absorver alguns factos relevantes para a compreensão do mundo de hoje. Trata-se de "A Guerra dos Judeus", do historiador Flávio Josefo. Mas não é desses factos que desejo tratar, mas de uma pequena passagem do livro que, como ao menos umas boas dezenas de outras passagens, vale por si uma reflexão profunda. A passagem é a seguinte:

Em combate, nada é feito irresponsavelmente nem deixado ao acaso: a ponderação precede invariavelmente a acção, e a acção é sempre em conformidade com a decisão tomada. Consequentemente, os Romanos raramente erram e, quando eventualmente cometem um deslize, remedeiam-no facilmente. Além do mais, acreditam que um plano bem concertado, mesmo que resulte num fracasso, é preferível a um feliz golpe de sorte - o sucesso acidental é uma tentação para a imprevidência, enquanto que a ponderação, ainda que ocasionalmente seguida de infortúnios, ensina utilmente como evitar a sua repetição. E consideram que quem beneficia de um incidente feliz não merece crédito pelo facto, ao passo que os desastres que ocorrem contrariamente a todos os cálculos deixam pelo menos a consolação de não se ter negligenciado nenhuma precaução.

O leitor desatento dos tempos que correm pensará que a tal passagem, em resumo, afirma que os romanos acreditavam que tudo deveria ser planeado e que seguiriam esses planos, invariavelmente, até ao fim, como se de alemães modernos se tratassem. Nada mais errado. A subtileza dos autores antigos só pode ser captada se os lermos com muita atenção e respeito, cientes de que estamos a lidar com gente que economiza em palavras, mas jamais no conteúdo. Pensem na escolha e na ordem das palavras (assinalei as palavras-chave em vermelho).

O que podemos apreender disso é que os romanos não deixavam nada ao acaso, ponderavam a situação e decidiam um plano de acção, agindo depois em conformidade. Dessa maneira, os seus comandantes e soldados estavam prontos para remediar rapidamente os erros, que resultavam de deslizes cometidos, pois tinham um plano de acção ao qual deveriam se ajustar em conformidade, em relação a ele e à situação, que podia sempre mudar e surpreender. Por vezes, como não poderia deixar de ser, o desastre era inevitável, mas dele poderiam tirar lições para evitar cair na mesma armadilha duas vezes. Os leitores modernos não parecem ter entendido esta passagem assim (à excepção de estudiosos da guerra, como Clausewitz), transformando Roma numa espécie de ditadura científica avant la lettre

Nada mais errado. Prestem bem atenção na passagem que diz que a acção é sempre em conformidade com a decisão tomada. Agir em conformidade com uma decisão tomada significa agir com liberdade suficiente para ajustar a acção num certo contexto específico de modo a conformá-la a um plano geral, o que implica uma autonomia dos "oficiais" e, dentro de certos limites, dos próprios soldados. Isso é algo bem diverso do tipo de organização mecânica que associamos aos germânicos, e não tem nada a ver com o caos quase árabe que os germânicos atribuem nos dias de hoje, com muita razão, aos latinos, nos quais nos incluímos. Porém, é interessante notar que isso acontece num tempo em que nos tentam encaixar numa sociedade germanizada. O que vemos, pelo contrário, é a completa anomia. 

Porém, nem sempre foi assim. Pegando num pequeno episódio da nossa história militar, é possível notar a existência desse espírito romano entre nós. Durante as guerras contra a Companhia das Índias Ocidentais (WIC) no Nordeste brasileiro, o português europeu Dias Cardoso (nascido no Porto), sargento-mor das forças patriotas que hoje é o patrono das forças especiais brasileiras, ao saber que os holandeses doravante iriam lutar dispersos como os luso-brasileiros, disse o seguinte:

"Melhor para nós, pois para os holandeses lutarem dispersos com eficiência, será necessário que para cada soldado exista um capitão, enquanto para nós isto é fácil, porquanto cada soldado patriota é um capitão."

Ao estudar essas "coisinhas", não é difícil descobrir porque estamos tão mal. Agora vos deixo com os bimbos centralistas que meteram em Lisboa. 

Sem comentários:

Enviar um comentário