Você já ouviu falar do Crislã? Essa é uma mistura sincrética de Cristianismo e Islã que teria surgido na Nigéria nos anos 80.
Temo que o tradicionalismo católico brasileiro esteja sendo invadido por uma onda de "crislamização" ou algo do gênero. Nesse sentido, temos já um grupo de jihadistas católicos armados se formando nas redes sociais, e que, vira e mexe, vem postar comentários neste blog, parasitando nosso trabalho para atrair simpatizantes para sua causa enquanto atacam, frequentemente pelas costas, os que aqui escrevem.
Outro sinal dessa tendência é o post do Prof. Carlos Nougué no site Estudos Tomistas em 19 de julho deste ano. Intitulando-o "Os católicos e as manifestações do próximo dia 31", Nougué fez mais do que simplesmente convocar seus leitores para que saiam às ruas nesse dia em protesto contra o Governo Dilma e os políticos corruptos. Abusando do tom grandiloquente e do estilo um tanto enfadonho que lhe é peculiar, ele não redigiu uma mera postagem: ele emitiu foi um verdadeiro fatwa!
Uma das coisas mais repulsivas que um religioso jamais deveria fazer é tentar transferir às suas conclusões pessoais, por natureza falíveis, a autoridade pétrea que sua religião sempre tem entre seus irmãos de fé a fim de convencê-los a concordar consigo por atribuírem incautamente à sua opinião pessoal o mesmo valor da doutrina oficial de sua religião ou aquela defendida por suas autoridades mais notórias.
E é exatamente isso que Carlos Nougué fez: apelando para a autoridade da Igreja e de Santo Tomás de Aquino, deu um ar de dogma conciliar iluminado pela sabedoria infusa a um raciocínio totalmente mal-ajambrado.
E é isso o que procurarei demonstrar abaixo.
Após dizer que não há consenso em diversos pontos relevantes entre os que participarão das manifestações do dia 31, exceto a punição dos corruptos e a rejeição ao comunismo, ele escreveu (negritos meus):
Ora, o católico, segundo doutrina infalível do mesmo magistério (posta porém de modo diverso de como se deu a definição contra o comunismo), não pode ser liberal nem defender o liberalismo. O militarismo (ou seja, a reivindicação de uma intervenção militar) parece-me de todo utópico no atual momento.O católico, segundo ele, e acertadamente, não pode ser liberal e nem comunista, mas ele dá a entender, pelo contexto, que o "militarismo" - a intervenção militar - seria aceitável por não ser nem uma e nem outra coisa, só não sendo defensável porque, "no atual momento", ele lhe "parece ... de todo utópico".
Mas essa análise não faz absolutamente nenhum sentido: o que impediria um governo militar de estatizar ou privatizar todos os meios de produção, por exemplo, tornando o país comunista ou liberal, respectivamente? Ele ignora que o Derg etíope promoveu um golpe militar que, tirando o rei do poder, instituiu um regime comunistóide? Ou que o General Augusto Pinochet liberalizou a economia chilena?
Ele, então, complementa:
Quanto aos candidatos à presidência, se se mantiver o quadro atual, havemos de votar em Bolsonaro contra Lula, contra Marina, contra Aécio, assim como nos Estados Unidos haveríamos de votar em Trump contra Clinton: o que porém não quer dizer que nos identifiquemos com Bolsonaro nem, muito menos, com seu partido, protestante. Trata-se de um mal (bem) menor que os demais, ao menos se Bolsonaro se mantiver na linha em que está.
Da doutrina infalível da Igreja, que determina que um católico não pode ser liberal ou comunista, ele tira que "havemos de votar em Bolsonaro contra Lula, contra Marina, contra Aécio", o que só se sustentaria se esses 3 candidatos, ou mesmo seus partidos, fossem inequivocamente liberais ou comunistas, o que evidentemente não é o caso, pois nem isso consta dos estatutos dos partidos e nem os dois governos de Lula e tampouco as propostas das campanhas de Marina e Aécio para as eleições de 2014, por mais que envolvessem aspectos tanto socializantes como liberalizantes, jamais se aproximaram do comunismo ou do liberalismo propriamente ditos.
Quanto a Bolsonaro, sabemos muito mais do que o fato de seu partido ser, na prática, protestante (apesar disso não aparecer em seus estatutos):
1. Bolsonaro, apesar de sua assessoria ainda dizê-lo católico, foi batizado em Israel por um pastor da Igreja Assembléia de Deus.
2. Segundo a análise do caso por um teólogo e ministro luterano, seu batismo significa necessariamente a adesão à Igreja na qual foi batizado (o que, aliás, contradiz a declaração de sua assessoria).
3. Além de ter participado desse controverso ritual de batismo e pertencer a um partido com destacados membros neopentecostais - dos quais Bolsonaro é muito próximo -, sua esposa é membro da Assembléia de Deus e um de seus filhos é batista.
4. É difícil acreditar que Carlos Nougué ignore a relação íntima entre pastores evangélicos, sobretudo da Assembléia de Deus - que é a igreja à qual pertence o Pastor Everaldo, que foi quem batizou Jair Bolsonaro, e logo em Israel -, com a maçonaria - como bem resumido pelo testemunho do Pastor Caio Fábio -, e a proximidade do próprio Bolsonaro com a instituição.
Na entrevista de Feliciano e Bolsonaro ao movimento Avança Brasil Maçons, e em outra entrevista, desta vez sozinho, ao mesmo grupo, em nenhum momento Bolsonaro expressa seu repúdio à organização, o que seria de se esperar de qualquer cristão e, sobretudo, de um católico.
Por que Nougué prefere ver comunistas e liberais onde não os há, enquanto ignora a evidente ligação do partido de Bolsonaro e do próprio com a maçonaria, veementemente condenada, tanto quanto o comunismo, como lembra o canonista católico Rodrigo Pedroso, pelo mesmo magistério infalível da Igreja que Nougué diz tomar como base?
E Nougué continua:
Mas parece-me que devemos apoiar decididamente a restauração da monarquia, pelas razões dadas em O movimento monarquista brasileiro e em Discurso do Príncipe D. Bertrand. Em resumo, o movimento monarquista e seu fim podem vir a constituir um efetivo bem, ainda que não o bem absolutamente desejável (mas também absolutamente impossível hoje) no âmbito do político.Como uma intervenção militar seria algo "de todo utópico" mas a restauração da monarquia algo factível, sobretudo se levarmos em consideração que o Exército é a instituição em que os brasileiros mais confiam, sendo que, por outro lado, os brasileiros rejeitaram, com 79% dos votos, o parlamentarismo em 1963 e voltaram a fazê-lo no plebiscito em 1993, em que mais de 44 milhões votaram pela manutenção da República, contra menos de 7 milhões favoráveis à restauração da monarquia?
Afora isso, o que Dom Bertrand tem defendido é a monarquia parlamentarista, como Nougué até reconhece no artigo citado, o mesmo em que ele pretende defender um apoio ao "príncipe" com base em ninguém menos que Santo Tomás de Aquino (!!). Ora, tentar colocar essa discussão em termos tomistas é falsificá-la completamente: o Doutor Angélico viveu séculos antes que sequer fossem imaginados o estado-nação e a "democracia" liberal atuais, com seus "contratos sociais" e suas "monarquias parlamentares". Tentar escorar-se em sua autoridade para apoiar esse ou aquele postulante a rei é de um artificialismo e uma falta de rigor que certamente fariam o mesmo Santo Tomás reprovar o notório tomista fluminense caso esse fosse seu discípulo.
Voltando ao texto, no referido "O movimento monarquista brasileiro", Nougué havia dito:
Com efeito, a atual família real é membro do IPCO (Instituto Plínio Correia de Oliveira, antiga TFP – Tradição, Família e Propriedade). A TFP teve destacada participação não só no movimento popular que ajudou a evitar em 1964 o comunismo, mas no Concílio Vaticano II (onde atuou ao lado dos bispos tradicionalistas que tentaram evitar a catástrofe que enfim se consumaria).E o que se sabe da TFP, de Dom Bertrand e do movimento monarquista brasileiro?
1. Da TFP, como atesta o Prof. Orlando Fedeli, sabe-se que um dia ao menos abrigou a seita secreta denominada Sempre Viva, que envolvia inclusive um culto à mãe do Dr. Plínio, Da. Lucília, o que sugere também suas semelhanças com o culto gnóstico ao Eterno Feminino que perenialistas schuonianos e "olavettes" acreditam ter se manifestado como a Virgem Maria. Além disso, há a "filosofia gnóstica" defendida também pelo Dr. Plínio em livro que pode ser baixado daqui e que foi analisado aqui pelo Prof. Fedeli.
2. O blog oficial de D. Bertrand chama-se Paz no Campo. Lá ele afirma, como se lê clicando-se em "Quem somos nós":
Nós somos os continuadores da luta de Plinio Corrêa de Oliveira...Se o leitor fizer uma busca pelo termo "distributismo" - que é o desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja - no blog de D. Bertrand, encontrará a seguinte resposta:
Já se o leitor fizer uma busca pelos termos "liberal" ou "liberalismo", encontrará a recomendação de vários textos favoráveis às políticas neoliberais.
Na mesma linha, O Príncipe dos Cruzados - um site favorável a Dom Bertrand e à TFP - sequer percebe a diferença entre defender a propriedade privada - como faz a DSI - e uma suposta defesa do capitalismo sem "seus abusos". Não sei se isso é fruto de falta de estudo ou falsificação deliberada mesmo.
3. Quanto ao movimento monarquista, o blog "Maçonaria - Estudos Críticos" aponta para o seguinte fato:
...recentemente, viu-se o notório maçon, o "Comendador" Antonyo da Cruz, Presidente do Instituto Brasil Imperial - IBI - ser tratado com toda a pompa e circunstância em importante encontro monarquista, no Rio de Janeiro, chegando mesmo a dividir a Mesa de direção dos trabalhos, sentando-se a direita de S.A.I. e R. D. Bertrand de Orléans e Bragança! Não é curioso que o Ilustre Príncipe, que nutre profunda ojeriza pelos Integralistas, se sinta tão a vontade na companhia de um maçon?!Ele então atesta o que diz postando o link para essa foto:
Sabendo-se também do apoio do blog e canal "olavette" Terça Livre ao movimento monarquista e a D. Bertrand, além das frequentes referências positivas de Olavo de Carvalho tanto a ele, como a Bolsonaro e também à maçonaria, e levando-se em consideração os fatos acima apontados, fica evidenciada uma estreita relação entre Jair Bolsonaro, de um lado, e o movimento monarquista brasileiro e D. Bertrand do outro, seja com o protestantismo, a maçonaria, o liberalismo ou o gnosticismo - os quatro condenados pela Igreja -, relação essa muito mais determinante para sua rejeição do que sugerem os aspectos socializantes e liberalizantes que por ventura se encontrem em Lula, Marina, Aécio ou seus respectivos partidos.
Carlos Nougué não "forçou a barra" somente: ele apelou para o magistério da Igreja e para a autoridade de Santo Tomás de Aquino para, distorcendo-os, avançar uma agenda política cujos agentes oferecem um risco muito maior à Igreja do que as opções por ele descartadas.
O fatwa do Aitolá Khomeini sobre Salman Rushdie pelo menos o condenou à morte por atribuir ao fundador do Islã a recepção dos tais Versos Satânicos. Já o fatwa do Aiatolá Nougué quer aproximar os católicos brasileiros dos defensores de doutrinas rejeitadas pela Igreja.
Parece-me que o Crislã tupiniquim será o sincretismo do pior de cada um dos lados.