Há cerca de um mês escrevi umas notas sobre a então “Crise da Ucrânia” aqui no Puro Sangue. Recomendo a sua leitura para facilitar a compreensão da minha perspectiva, que acredito ser, apesar de invulgar, útil. Diante da evolução dos últimos dias, e da desorientação generalizada, resolvi escrevi umas poucas notas sobre o que agora passou a ser a Guerra da Ucrânia. Vamos a isso:
1 – A invasão da Ucrânia não era desejada pela Rússia, apesar desta estar preparada para tal desfecho desde, pelo menos, 2014 (tudo me leva a crer que o interregno Trump adiou esta possibilidade), mas era o objetivo do Ocidente. Não fosse assim, Washington, Bruxelas e Londres não teriam incentivado Zelensky a provocar os russos, começando por declarações de intenção em prol do rearmamento nuclear(!), passando pela manifestação da vontade de entrar na NATO/OTAN e acabando mesmo em ataques de morteiro e ações de sabotagem de comandos ucranianos dentro das fronteiras russas. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, a Casa Branca afirmava que não colocaria homens no terreno. Mais claro, impossível.
2 – Não haverá uma guerra de guerrilha na Ucrânia, ao menos do tipo que seria possível no Afeganistão, devido à configuração do terreno. Mesmo nas poucas áreas montanhosas à oeste os russos não terão grandes dificuldades devido à experiência adquirida no Afeganistão e na Chechénia, para além da disponibilidade de tropas especializadas neste tipo de guerra (os chechenos de Kadyrov). O mais provável é que comandos treinados no âmbito da pouco conhecida Operação Left Behind, uma estratégia de “stay behind” sucessora da “Operação Gládio”, façam acções pontuais de sabotagem e terrorismo para manter o máximo número de tropas russas ocupadas no terreno.
3 – Kiev, com a sua população civil, será usada como “cannon fodder”. O governo de Zelensky não se renderá e sacrificará o maior número possível dos seus cidadãos, criando o máximo de confusão para dificultar a distinção entre civis e militares, dando força à narrativa anti-russa na opinião pública ocidental. Milhares de câmaras devem estar espalhadas e preparadas em todos os pontos da capital ucraniana para bombardear o público ocidental com imagens que inspirem o terror e o ódio anti-russo.
4- Os governos ocidentais, acuados por movimentos como o dos coletes amarelos franceses e os bloqueios dos caminhoneiros canadenses, ainda mais agora que começa a primavera, usarão o pretexto da guerra para estabelecer a censura total nos seus domínios e para limpar os quadros superiores das suas forças armadas, ocupando-as com oficiais totalmente coniventes com a política atualmente seguida. Lembrem que oficiais de alta patente têm dado sinais de descontentamento nos EUA e na França, além do que o soldado comum está cansado das intermináveis guerras que desgastam o Ocidente, nunca alcançam o êxito mas, invariavelmente, enchem os cofres dos fundos de investimento e concentram ainda mais poderes nas mãos das elites transnacionais. Pensem na evolução do mundo desde o 11 de Setembro.
5 – O exército designado para a intervenção na Ucrânia compreende todas as forças russas capazes de atuar com rapidez fora das suas fronteiras. Enquanto estiverem ocupadas na Ucrânia, a NATO/OTAN – e/ou os seus “proxies” - terá carta branca para agir. Há relatos de colunas russas paradas devido à falta de suprimentos, o que prova que a capacidade logística russa está no limite. Minha aposta é que haverá um aumento da pressão na Síria.
6 – As sanções visam, claramente, embaraçar Putin e alienar toda a classe endinheirada do seu regime. É óbvio que desejam despoletar uma Primavera russa. Se Putin sofrer uma derrota no cenário externo, como na Síria, a sua maior fonte de apoio entre o povo, a bem-sucedida política externa em defesa do interesse nacional, será embaraçado e parte dos russos começará a questionar a sua liderança, tanto entre os mais “pró-ocidente” como, especialmente, entre os mais “linha dura”. Mas isto, se acontecer, só aumentará as tendências a uma “desliberalização” russa e, consequentemente, o fosso ideológico que separa Moscou do cosidetto mundo livre será alargado.
7 – A China não invadirá Taiwan. Taiwan, e voltarei a escrever sobre o assunto, se integrará à China sem nenhuma guerra. A questão fundamental, ao meu ver, diz respeito ao grau de entendimento entre as elites taiwanesas, especialmente no Kuomintang, e o Partido Comunista Chinês. Abordarei o assunto na próxima parte do artigo “Nebel des Krieges”.
8 – Só teremos paz com a Rússia a longo prazo se os patetas que actualmente mandam em Washington, Londres e Bruxelas forem derrubados e substituídos por lideranças pragmáticas e que se coloquem contra toda a oligarquia, hoje mais coesa do que nunca por via dos grandes fundos de investimento e da solidariedade de classe forjada pelo crescente sentimento de cerco da parte dos que vivem isolados em Davos e Monte Carlo, favorecendo a velha política de equilíbrio de poder e as concepções vestfalianas nas relações internacionais em detrimento do espírito de cruzada pós-moderno favorecido por republicanos neo-cons, democratas imperialistas e pela maior parte da “elite euro-atlântica”.
9- Zelensky é um criminoso de guerra, um traidor do próprio povo. Em nome de interesses estrangeiros, de certo seguro da tradicional garantia de exílio na Côte d’Azur e de conta bancária na Suíça, não vai fazer o que qualquer chefe de estado racional e interessado na paz faria caso tivesse caído, por descuido, na armadilha da guerra: pedir trégua e abrir negociações. Não faz sentido continuar este conflito. A queda de Kiev é uma questão de tempo e não vai alterar o resultado da guerra, ou melhor, o desfecho inevitável só vai aumentar a força negocial russa nas conversas futuras.
10 - Para terminar, desejo expressar a minha decepção para com o Itamaraty, que perdeu uma oportunidade única para fazer a diferença numa grande questão internacional, na melhor das hipóteses, ou, pelo menos, mostrar ao mundo que o Brasil é uma nação adulta, responsável e capaz de jogar o “Grande Jogo”. O timing da visita presidencial era perfeito para o lançamento da proposta de uma Conferência Internacional de Paz, podendo ter uma cidade brasileira como palco (o Rio de Janeiro seria o cenário ideal), com a oferta de tropas para uma missão de paz e de formação de um grupo de observadores internacionais para acompanhar a evolução da situação no terreno e impedir os choques directos. O Brasil poderia convidar países com uma posição de relativa equidistância em relação aos atores diretamente envolvidos, como a Índia e a Indonésia, para a tal missão, além de várias nações africanas como a Nigéria, Angola e a África do Sul, o que aumentaria o seu soft power na África sub-saariana. Tanto no caso da proposta ser aceite como no caso de ser refutada, o nosso soft power teria sido incrementado de uma forma extraordinária. No caso de ser aceite, teríamos evitado uma grave crise internacional. No caso de ser refutada, os eventos subsequentes mostrariam a sabedoria da posição brasileira. Ao invés disso, desperdiçamos uma oportunidade única ao melhor estilo “diplomacia do futebol”. Nosso presidente, mais uma vez, fez o papel do meme “Ronaldinho numa situação aleatória”. Parece que o dano causado pelo lafers, amorins e araújos da vida apagou de vez o brilho do velho Itamaraty do Barão do Rio Branco. Os historiadores do futuro não perdoarão tal erro!