Revolta Taiping: numa época cujo potencial de destruição era bem inferior ao nosso,
essa cobrou algo entre 20 a 40 milhões de vidas...
Nos posts anteriores sobre a
China (parte 1, parte 2), abordei os progressos materiais das últimas décadas.
Agora tratarei de analisar as distorções criadas pelo modelo adoptado pelo regime chinês,
começando pela dívida. Lastreado pelas experiências prussiana, mas
especialmente pela japonesa e coreana, o regime chinês optou por um modelo de
crescimento económico em que a alta-poupança da população, apesar dos baixos
salários, se combinou ao crédito facilitado a grupos económicos privados,
mistos e públicos especializados nos sectores classificados como prioritários. Para
além do acesso quase irrestricto ao crédito, tais grupos também foram
beneficiados por meios mais discretos, nomeadamente por um regime de
câmbio favorável às exportações e ao acesso privilegiado à matéria-prima
garantido pelo empenho do regime chinês em “amarrar” os grandes fornecedores e
sufocar a oferta disponível para a concorrência.
Mas, ao contrário da Coreia,
nação com algumas dezenas de milhões de habitantes, ou o mais populoso Japão, cujo
esgotamento do modelo de crescimento baseado nas exportações de manufacturas resultou
numa em deflação que dura há duas décadas, a China sozinha representa 1/5 da
humanidade e, para piorar o quadro, as grandes nações consumidoras chegaram ao
limite do endividamento e se encontram estagnadas, não podendo mais sustentar o
crescimento chinês por via das suas importações. A aposta no progresso material da
China através de tal investimento massivo nas indústrias de base e exportadoras,
do ponto de vista económico, não faz sentido, ainda mais quando o êxodo rural,
incentivado pela política de cerco à propriedade rural e de deslocações forçadas de gente pelo recurso
às grandes obras públicas, como no caso da famosa hidreléctrica das Três Gargantas,
é colocado na equação. Tal modelo, inevitavelmente, conduz a um excesso de
capacidade productiva e ao endividamento massivo, uma péssima combinação mesmo
em nações menores que a China, e numa nação como a China, pode acabar num desastre social de proporções inéditas (lembrem que o Reino Unido, assim como a Alemanha, tiveram o cano de escape da emigração durante fases análogas do seu crescimento).
Só para acolher os cerca de 300
milhões de chineses que migrarão do campo para as cidades nas próximas duas
décadas seria preciso manter um crescimento económico que, já sabemos, não
pode ser obtido exclusivamente por via das exportações, e muito menos por via do crescimento
interno, através de incentivos ao consumo, pois o endividamento actual é insustentável. Há estimativas que apontam para uma dívida interna em torno dos 500% do PIB, e se a isso somarmos os crescentes
encargos previdenciários esperados com o rápido envelhecimento da população,
uma grande crise é mais do que certa.
Longe disso ser um quadro
distante, os sinais de que a bolha imobiliária está prestes a arrebentar de forma brusca são
crescentes e o potencial de crise social é enorme, até porque o regime chinês recorreu
aos sucessos económicos para legitimar a sua continuidade no período a seguir
ao famoso episódio dos protestos na Praça da Paz Celestial. Ainda assim, no
campo, onde as políticas económicas do regime provocam confiscos generalizados e o deslocamento compulsório de populações inteiras, políticas cujos inconvenientes não são compensados pelas benesses do crescimento económico acelerado, há um aumento constante das revoltas
camponesas desde 2005, o que não augura um bom futuro. Por outro lado, as centenas de milhões de chineses
saídos do campo para as cidades nas últimas duas décadas continuam ligadas às
populações rurais com os quais têm laços de sangue, e as comunicações
facilitadas pelos meios de comunicação modernos tornam tais elos, que entre os chineses foram sempre bastante fortes,
ainda mais sólidos e eficazes do que em qualquer momento do passado. Nas
comunidades chinesas no exterior, como se pode constatar por todo o Sudeste Asiático,
é fácil avaliar a importância de tais conexões, e o seu potencial político.
Às revoltas no campo, esporádicas, espalhadas por todo o território mas isoladas, de natureza
quase exclusivamente regional, pode se somar uma grande revolta nas cidades, causada pelo estouro da
bolha, e isso poderia unificar a oposição ao regime, nem que seja exclusivamente pela oposição ao regime (o que é mais provável). Uma leitura, ainda que
superficial, da História da China e dos chamados ciclos dinásticos nos leva a
acreditar que tal evento levaria de certo a uma queda do regime, na melhor das
hipóteses, ou ao caos generalizado e à ingerência por estrangeiros, na pior. Digo
pior pois essa hipótese, como veremos mais adiante, torna certas “tendências defensivas”
presentes no actual regime ainda mais irresistíveis. Para se ter
uma ideia clara da evolução dos humores na China, citemos alguns números. Abaixo
segue uma pequena tabela cujos números foram retirados daqui:
Ano
|
Total de Revoltas na China
|
1993
|
10.000
|
2003
|
60.000
|
2010
|
180.000
|
E há sinais de que estamos
prestes a ver a revolta sair do campo de chegar à cidade:
Bem que muitos nos avisaram a respeito da conveniência de se deixar a China em paz, progredindo no seu próprio ritmo, como fizemos por séculos. Entre os que defenderam tal posição, mais recentemente tivemos o exemplo de Napoleão, que não era propriamente um pacifista tolo. Infelizmente, no curso do século XIX, por iniciativa dos então poderosos anglo-saxões, foi a posição dos traficantes de droga que venceu, e a China pagou um preço bem caro por isso...
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