domingo, 22 de setembro de 2013

Algumas palavras sobre a “unificação” italiana




Aquele médico de avental, amigo das criancinhas, pagará um bom preço por essa cabeça.


Não entro em discussões a respeito de temas que não domino, por isso, nada direi a respeito das posições teológicas dos meus colegas, me limitando a aprender algo a respeito do assunto. A discussão em torno da natureza da Trindade transcende de largo os meus conhecimentos, assim como a questão da Infabilidade Papal. Tudo o que conheço a respeito desses temas foi adquirido a partir de leituras sobre outros assuntos onde essas questões eram tratadas por alto, e isso, para mim, é insuficiente. Ao longo da minha vida, aprendi que o conhecimento adquirido em artigos, monografias, discussões, aulas e documentários pode muitas vezes estar em contradição com o que apreendemos quando vamos investigar o assunto por conta própria, absorvendo tudo o que foi escrito a respeito dele.

Dito isto, passo para um tema abordado tangencialmente num post do Orlando Braga a respeito da infabilidade papal, que não põe em causa o que foi escrito pelo mesmo a respeito da infabilidade, o que não estou em condições de averiguar, e nem coloca em causa a possibilidade de que a Santa Sé agiu motivada mais por considerações de poder do que por outras  razões relativamente à dita unificação italiana, apesar de muitos factos desmentirem essa hipótese. Porém, o mesmo não pode ser dito do movimento por detrás do risorgimento, que, aparte as motivações de idiotas úteis seduzidos pela retórica liberal e socialista, foi exclusivamente um movimento de busca de poder e recursos.

Em primeiro lugar, lembro que a unificação italiana foi obra de uma minoria militante mobilizada e organizada por associações esotéricas como a maçonaria e a carbonária, tendo sido a última fundada e financiada por recursos dos Rothschild. A essa minoria serviu a casa de Savóia, famosa pela sua ancestral adesão entusiasmada aos princípios de Maquiavel, que deu origem à famosa frase: “A Casa de Savóia nunca acaba uma guerra no mesmo lado onde começou, a não ser que a guerra perdure por tanto tempo que ela tenha trocado de lado duas vezes”.  Fica aqui um alerta aos monarcas dispostos a alianças estratégicas com os inimigos da tradição. Procurando o ganho máximo a curto prazo, o que conseguiu a famosa casa de Savóia após séculos de existência e protagonismo? Se tornar irrelevante em pouco mais de uma década, decaindo constantemente até a deposição final. E a decadência continuou após a deposição, afinal, não foi há muito que descobrimos que o actual cabeça da Casa de Savóia estava envolvido com o negócio da prostituição. Mas isso não vem ao caso.

A Casa de Savóia, como tem sido comum às famílias dinásticas degeneradas pela acção do tempo, não foi mais do que um instrumento involuntário de um movimento que tinha por finalidade um objectivo que passava pela sua própria destruição. Num primeiro momento, serviu para colocar muitos diante da seguinte armadilha dialéctica: se a Itália não for unificada pela acção do Piemonte-Sardenha, o será pela acção de revolucionários que destruirão por completo os privilégios dos quais goza a elite. Quanto ao povo, na sua maioria odiava os revolucionários e manteve-se fiel à velha ordem, especialmente no sul de Itália, onde existia o Reino das Duas Sicílias.

Após a agressão contra o reino meridional, como foi consolidado o poder por lá? Por mais de uma década de lei marcial e dezenas de milhares de fuzilamentos e desaparecimentos, estes últimos levados a cabo tanto pela acção da maçonaria e da carbonária, como também pela acção do grande aliado dessas organizações na unificação da península itálica: as "máfias". Se estas, na fase final do antigo regime, eram organizações de malfeitores que nunca puseram em causa a lei e a ordem, a não ser de maneira muito limitada e pontual, depois da agressão ao reino das Duas Sicílias se tornaram o verdadeiro poder invisível no Sul de Itália.


Relíquias da religião do progresso. 


Tomasi di Lampedusa descreveu bem o processo pelo qual o Sul da península foi conquistado. De um lado, a agressão combinada dos bandos vermelhos e das modernas - e bem financiadas - forças militares do Piemonte, que assim pareciam a muitos uma garantia de manutenção de um mínimo de lei e ordem, e do outro, a fraqueza e a estupidez de elites acomodadas e mais interessadas nos seus privilégios do que nos seus deveres. Convencidos por argumentos maquiavélicos, foram muitos os grandes do Sul que se deixaram levar pelos "ventos da história", sem ver que assim acabavam por se condenar à irrelevância num mundo onde apenas os oportunistas tinham portas abertas, mas nem por isso gozavam de segurança, ou melhor, acabavam sendo eles próprios vítimas da insegurança, da qual apenas as grandes famílias do mundo das finanças estavam a salvo (e até lucravam e incentivavam isso). Foi por esta razão que a filha do Príncipe de Salina não casou e perdeu os privilégios ancestrais da família, enquanto o sobrinho, um oportunista sem carácter, acabou por se encaixar no sistema casando com a filha de um merceeiro ladrão enriquecido, condenando a descendência da família a uma queda lenta, mas sem fim, resultante do corte brutal com o passado. E isso tem sido a regra nas “grandes famílias”, cuja decadência é reflexo e motor da decadência da própria civilização Ocidental. A excepção de uns poucos que acabam por se isolar do meio dominante para manter a sanidade, abdicando assim de intervir politicamente, a verdade é que a maioria foi tão desmoralizada que só se distingue da ralé urbana enriquecida por ainda não ostentar nomes do tipo Lyoncee Viikthórya, mas já faltou bem mais para isso.

Quanto à Itália, é importante observar o que se passou desde a unificação. Depois de décadas de emigração massiva, motivada pela combinação do confisco às terras da Igreja com a instituição de um serviço militar obrigatório prolongado (5 ou 7 anos, se não me engano), a crescente concentração fundiária, a expulsão de muitos camponeses das suas terras por culpa das dívidas, agora protegidas pela legislação liberal, e às perseguições políticas no Sul, temos uma nação dividida, prestes a arrebentar, cuja evolução política nada fica a dever às famigeradas repúblicas latino-americanas, não por acaso também fundadas por "irmãos". Se no passado o Sul era diverso do Norte em termos económicos, afinal, o mezzogiorno não oferecia à indústria as mesmas vantagens que a parte setentrional da península e a sua agricultura não contava com terras tão férteis e abundantes mais a Norte, com raras excepções, e nesses casos não havia um hiato, isto estava longe de significar que o Sul era “atrasado”, que se encontrava estagnado. O relevo e o clima actuavam contra o Sul, que se desenvolvia ao seu ritmo, com os seus recursos e em seu próprio favor, e nada impedia que esse desenvolvimento, chegado a um determinado ponto de maturidade, não permitisse que o Sul superasse os feitos do Norte. Nápoles, Catânia, Messina, Palermo e Siracusa possuíam uma vida cultural que nada ficava a dever àquela encontrada nas grandes capitais setentrionais. Por fim, vale a pena lembrar que a Sardenha fazia parte do Reino da Sardenha e Piemonte e era bem mais pobre que muitas das zonas que os piemonteses e outros setentrionais apontavam como paradigmas do atraso. Mesmo hoje, apesar desta não ter sido alvo da agressão militar e da exploração económica como as regiões do Reino das Duas Sicílias, a Sardenha está mais próxima da Sicília do que do Piemonte ou da Lombardia, e consideravelmente atrás das regiões centrais de Itália, que faziam parte dos estados pontifícios, ou da Romanha, de Bolonha e de Ancona.

Gente capacitada não faltava no Sul, como provam os seus músicos e académicos, e os novos desenvolvimentos tecnológicos, como o telégrafo, a ferrovia e a electricidade, prometiam diminuir essas dificuldades, apesar de numa primeira fase actuarem em favor do distanciamento entre as áreas economicamente mais activas e as menos activas. Empreendedorismo também não faltava, como atesta o desempenho dos seus filhos emigrados nas Américas, o que mete em causa muitos dos preconceitos criados para justificar o fracasso dos planos de progresso que os piemonteses usaram como arma de propaganda para justificar a sua agressão armada.

Quanto aos estados pontifícios, surgidos tão só da necessidade numa era remota de caos e invasões, um processo análogo se passou. Para além da perfídia de parte das elites, conquistadas pela promessa de uma maior participação na política e maiores ganhos económicos na exploração dos recursos a nível nacional, temos aqui - também - a participação da populaça urbana, desde sempre facilmente conquistada por projectos radicais, como se pode comprovar em todas as revoluções, e até mesmo na História de Roma desde a Idade Média, não apenas por ser fácil manobrar essas massas urbanas, especialmente quando vivem de expedientes e do assistencialismo, mas sobretudo porque a promessa implícita em qualquer revolução, em caso de sucesso, é a de empregos estatais no Leviatã reforçado, especialmente para os que se destacarem na perseguição aos reaccionários.  Quanto às elites, lembremos que desde há séculos, e falamos de tempos tão recuados como a chamada alta Idade Média, estas sempre agiram no sentido de espoliar a Santa Sé dos seus estados em benefício próprio. Mas agora se juntava a tudo isso o poder das finanças e também a rede de contactos das associações esotéricas surgidas no tempo das luzes, que permitiam uma coordenação de esforços a nível nacional e internacional. Pio IX bem que tentou desarmar esse movimento, liderando várias reformas anti-absolutistas de cariz liberal, porém, nenhuma cedência era suficiente pois um dos objectivos da unificação de Itália era a destruição do papado, ainda que este fosse um objectivo a ser alcançado a longuíssimo prazo, de forma gradual (a revolução francesa ensinou várias lições aos senhores deste mundo).

Um dos grandes nomes do Risorgimento, Giosue Carducci, maçon e carbonário, mais tarde agraciado com um Nobel pelos seus serviços à “causa universal”, jamais escondeu que o objectivo final da unificação italiana era livrar a península do catolicismo, ao qual atribuía as supostas desgraças de Itália. Seu Himno a Satanás é uma leitura obrigatória a todos os que desejam compreender de forma inequívoca o zeitgeist das elites italianas de então. 

O golpe final contra os estados pontifícios foi dado durante a guerra franco-prussiana, que serviu de pretexto para a retirada das forças militares francesas e assim deixou o papado a sós, sem possibilidade de se defender do militarismo piemontês, tanto por culpa da desproporção das forças como também por causa da infiltração do seu aparato administrativo e militar pela quinta coluna. Aqui, também jogou a hostilidade anti-católica de Bismarck, afinal, sem o consentimento prussiano, as forças do Piemonte jamais teriam atacado.

Passados mais de 150 anos da unificação política da península italiana, o que temos? Um Sul ainda mais distante economicamente do Norte do que por altura da unificação, “apesar” de todos os subsídios ao seu desenvolvimento, e ainda por cima corrompido politicamente e também corruptor. De um lado, temos ali uma elite parasitária que vive do erário público e de monopólios legais e ilegais, do outro, um povo indiferente, em estado avançado de anomia. Destruída toda a base económica da economia do sul por uma unificação conduzida pelos grandes interesses financeiros e industriais sediados a norte, este, num primeiro momento, serviu como um mercado captivo para os seus excedentes, passando depois a fornecedor de mão-de-obra barata para as suas indústrias, que aos poucos se tornaram grandes exportadoras graças a toda essa massa de gente expulsa das terras a sul. Graças a este excedente de mão-de-obra, gente demasiado empobrecida para fazer a América, muitos empreendedores familiares do Norte tiveram condições de empregar funcionários e expandir os seus negócios, mas ao mesmo tempo os que não souberam tirar proveito das oportunidades criadas pela agressão ao Sul foram proletarizados, gerando uma animosidade em relação aos meridionais que até hoje marca a alma italiana.

Algo análogo está a se passar agora a escala europeia e por isso é bom olhar para processos semelhantes ocorridos no passado, especialmente quando foram provocados pelos mesmos agentes históricos que hoje dão as cartas, com muita atenção. Se não o fizermos, corremos o risco de não apenas ver Portugal se transformar, definitivamente, numa espécie de Sicília europeia, deixando de ter relevância histórica e vontade própria, mas, diante dos perigos que o mundo de hoje oferece, podemos vir mesmo deixar de existir como povo. 

Quanto à posição papal durante o criminoso processo de unificação política da península itálica, sou obrigado a dizer que ele estava do lado certo, fossem quais fossem as suas motivações principais. Porém, como tem sido habitual nos últimos séculos, os chamados ventos da história costumam soprar na direcção contrária.

Sem comentários:

Enviar um comentário