segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Paladinos de um falso rei: “desconstruindo” um texto liberal

O liberalismo tem os seus reis e imperadores.

No meio de tantos esforços, fica difícil dedicar tempo aos escritos mais nobres, especialmente porque um blogue exige de alguma maneira um acompanhamento dos factos quotidianos, ainda que o Prometheo tenha como objectivo escapar à pauta dos jornais e analisar o presente de forma serena, focando o que é de facto relevante ao invés de se perder no caos planeado do submundo das notícias, ou dos blogues pautados pelo mesmo. Todavia, há poucos dias li um texto a respeito da reacção dos brasileiros a um tipo conhecido por rei do camarote que me chamou a atenção. Para saber do que trata o texto, e quem é o tal “rei”, recomendo a todos um esforço de pouco mais de três minutos, de preferência em jejum, para que conheçam o material que deu origem ao texto citado:


O que em primeiro lugar chamará a atenção dos leitores europeus é a semelhança entre este padrão de consumo e o que observamos nas nações subitamente enriquecidas pelo petróleo no continente africano, afinal, isso não se vê na Noruega (que está longe de ser um exemplo, que fique claro, mas não deixa de ser uma nação com algumas qualidades notáveis). Tal comportamento perdulário associamos aos filhos de ditadores africanos, magnatas russos, multimilionários chineses, actores americanos e jogadores de futebol no velho continente. Seja como for, este padrão de consumo está relacionado com um ganho que exigiu pouco esforço, ainda que denote algum tipo de talento.

Conhecendo a realidade brasileira, que é o que é e não adianta descrever, é impossível não questionar a razão de alguns ganharem tanto e outros tão pouco. É natural que haja diferenças, que em maior ou menor grau estão relacionadas com o as capacidades dos indivíduos, e as circunstâncias que os envolvem, mas ao contemplar a oratória do rei do camarote, e o seu comportamento, é difícil explicar essas diferenças relativas aos proveitos do trabalho pelo talento, afinal, isso significaria que a população brasileira é constituída quase que exclusivamente de idiotas. Eu, que vivi por lá metade da minha vida, posso garantir que os brasileiros são idiotas, como todos os povos, em vários aspectos da sua vida, porém, isso não inclui a sua capacidade empresarial. Na minha experiência de vida, não conheci um povo com maior número de empreendedores natos do que o povo brasileiro. Quanto a Portugal, não fica muito atrás, mas a armadilha económica em que está - e foi - metido acaba por expulsar os mais empreendedores pela via da emigração, para não falar do facto de Portugal ser um “território velho”, onde a civilização conta com pelo menos 2000 anos (estou a ser muito conservador nessa análise, como podem atestar os arqueológos).

E por falar em idiotice, faço em primeiro lugar uma análise pragmática a respeito do comportamento do rei: numa nação onde as estatísticas da violência só perdem para a de alguns países em guerra, especialmente uma que está a beira de uma revolução comunista e o pensamento de esquerda é hegemónico, em que o Estado não hesita perseguir os indivíduos mais afluentes em nome da justiça social (inveja em português “arcaico”), não é este cavalheiro um grande idiota? Se estivesse na posição dele, pagava pelo anonimato!

Agora me darei ao luxo de ser um bocado moralista: é certo se referir às mulheres como se todas elas fossem hetairas em busca de fortuna? É saudável excitar a inveja nos invejosos pelo prazer idiota de se ser invejado? Que tipo de ser humano consegue se divertir sabendo que despertar em outros seres tão baixos como ele os instintos mais baixos imaginários, ao ponto de ter que sair com dois gorilas para não apanhar? E por falar nos gorilas, como é que esse imbecil está certo de que pode confiar neles, especialmente sendo um imbecil?

Mas todas essas considerações são pueris quando comparadas com o que ainda tenho para dizer, e é isso que nos interessa. Para tal, usarei  o texto citado para contrapor uma análise tradicionalista a uma análise liberal, de modo a expor a grande falácia económica que é o liberalismo demonstrando que o mundo liberal é uma ficção erguida sobre uma realidade que ele está a destruir. Como já disse num outro verbete®, muito do que é afirmado por todas as escolas económicas liberais é verdadeiro, mas isso não passa de uma colecção de observações colhidas pela experiência que estão ao nível do tautológico. Tudo o que os economistas liberais “descobriram” está implícito nos antigos, que não sentiram a necessidade de elaborar tabelas e desenhos e pois acreditavam que os seus leitores não precisam delas. A respeito disso mesmo fiquei a saber, graças ao meu irmão, que uma cientista sueca descobriu que os animais têm sentimentos, após vários anos de estudo, e que há leis que obrigam os estabelecimentos que servem café a terem avisos advertindo o público que o café quente pode causar queimaduras. É mais ou menos disso que estou a falar.

Antes de avançar para o texto, quero fazer mais uma observação. O conservadorismo brasileiro, tal e qual o português, é fundamentalmente liberal, distinguindo-se do liberalismo descaradamente materialista por defender a moral cristã, mas dentro de uma ordem política e económica liberal. Contudo, há uma grande diferença.  Cá em Portugal o tradicionalismo nunca morreu e tem ganho muita força, havendo esperança de que em breve se transforme numa força política activa. No Brasil, o que podemos chamar de tradicionalismo não é um movimento concentrado, se encontrando pulverizado, estigmatizado e marginalizado. Preparei um texto sobre esse tema e tratarei de o publicar assim que fizer as correcções, afinal, isso não é urgente. Agora vamos ao texto liberal/conservador que me chamou a atenção:


O autor, em resumo, explica que a diferença entre o que existe em Rondônia e São Paulo é explicada pelo dinheiro em circulação. Sendo mais abundante em São Paulo, é natural que São Paulo tenha mais luxos do que Rondónia, e também mais gente, afinal, onde há dinheiro, há gente.  E depois dá uma explicação a respeito da circulação do dinheiro que em nada difere da keynesiana. O que interessa é gastar, afinal, o dinheiro circula. Voltaremos a isso, mas antes é preciso resumir o resto do texto. 

Descreve brevemente o tal rei, um empresário de nome Alexander de Almeida (vá lá, podia ser Jonerval de Almeida;), assim: o rapaz, de quase quarenta anos, fala de si mesmo e do que gosta com um acento tão tímido que mais parece adolescente falando do primeiro baile. Eu achei graça. Eu achei graça e nada mais do que isso. Para não me prolongar, depois do que vi, diria que o rei, se ousasse levar a minha filha para o camarote, se tornaria o eunuco do Sultão Gay. Interessante também observar que hoje é normal descrever um cavalheiro de 40 anos como rapaz, e mais ainda que alguém que continue "rapaz" nessa idade seja um empresário.

Depois, reservando-se ao direito de também ser moralista (todo mundo pode ser, desde que não exagere), ele explica que o rapaz pode gastar o dinheiro como quiser e que ele é um “benfeitor”, afinal, os seus gastos sustentam muita gente. Nesse ponto Ayn Rand bateria palmas! Segundo o autor do texto, é melhor isso do que ser carniceiro do Camboja, comparação que engana quem não fizer uma leitura holística desses factos. Comecemos por esta última observação. Por acaso, mas só por acaso, esse padrão de consumo me lembra o observado entre os magnatas monopolistas americanos do princípio do século XX, e por mais acaso ainda este grupo social foi o maior investidor na Revolução Russa, e seus descendentes continuam a fazer bons negócios no mundo comunista. 

Voltemos a Rondónia. Ao olhar para o mapa do Brasil, conhecendo os seus recursos, e a história da humanidade, a pergunta que se deve fazer é a seguinte: como é que numa nação praticamente virgem, com um potencial que salta à vista de qualquer um, o dinheiro que procura alto retorno e está disposto ao risco não inunda jóias como Roraima, que não por acaso são um alvo primordial das corporações ocidentais e de governos como o chinês? Como é que essas zonas do Brasil não são os maiores pólos de atracção de gente, o que no fundo é apenas a continuação do processo histórico do Brasil? Segundo o autor, as pessoas estão onde há dinheiro. Mas o dinheiro corre para onde existem as oportunidades, e as melhores estão em Rondónia, onde tudo está por desbravar, do que em São Paulo, onde quase tudo o que há para fazer já é feito e há vinte milhões de otários vivendo apertados num lugar feio, triste, sobrevalorizado e caro.

Se a lógica do autor estivesse correcta, então seria impossível explicar a própria existência do Brasil, afinal, quem largaria Lisboa ou o Minho, ou deixaria a magnífica Índia de lado para lá se estabelecer? Respondo: os aventureiros e os empreendedores que querem chegar ao topo. Por outro lado, lembremos agora da Europa. Sabemos que a Europa germânica era pobre, primitiva e não oferecia ganhos imediatos, levando Augusto, após o desastre de Teutoburgo, a desistir da sua “colonização”. Caído o Império, sob influência de missionários cristãos e das ordens religiosas que para as florestas da Germânia se deslocaram, a agricultura prosperou, os primeiros engenhos hidráulicos foram construídos, o comércio chegou a todas as partes e a indústria floresceu. 

Séculos depois da queda do império, as zonas da Flandres, privilegiadas pela sua posição geografica e pelos seus ricos solos, agora aumentados pelo esforço de gerações que aprenderam a construir os diques, técnica desenvolvida também pelos monges, alcançavam o nível de actividade económica e a riqueza cultural das zonas mais activas de Itália. Acho que estes dois exemplos servem como contraponto a essa afirmação do autor do texto. Por outro lado, um fenómeno análogo ao que se passa no Brasil se deu nas grandes invasões de bárbaros da História. Esses de facto foram em busca dos locais onde estava o dinheiro, enquanto nos outros casos o dinheiro e as pessoas foram em busca do que estava por ser desbravado.

Dito isto, agora compartilharei convosco o que retirei dessa matéria a respeito do rei do camarote, que diz muito a respeito das distorções que encontramos no Brasil, que, no fundo, estão por toda a parte, ainda que menos intensamente (a não ser nas “feitorias” do mundo). Em primeiro lugar, fiz as contas. Segundo a revista, o rei do camarote chega a gastar 50 mil reais numa noite. Será que ele vende tantos carros de luxo assim? É que tal padrão de gasto não se encaixa num mero revendedor de carros, ainda que ferraris e coisas do género. Enfim, este não me parece o comportamento de um empresário, mas antes de alguém que arranjou uma posição como empresário. 

Levando em conta o tipo de gente que pode comprar ferraris e carros de luxo dessa gama sem pôr em risco o seu futuro ficanceiro, e a maneira como a política e a economia se fundem no Brasil liberal/socialista (é assim desde o advento do liberalismo), não é difícil chegar à conclusão que as conexões é que contam e que as vendas de carros de luxo são no fundo proporcionais ao enriquecimento de uns numa economia dominada por monopólios e bancos, em que os primeiros usufruem das leis e dos contractos públicos, assim como dos empréstimos amigos do banco estatal de investimento local (BNDES), e os últimos do défice permanente, que justifica as altas taxas de juro num contexto onde não existe risco de calote (quando isso acontecer, lá vem o FMI com o dinheiro do contribuinte das nações que não estão tão mal). 

Portanto, mais do que sinal de saúde ou pujança económica, o consumo perdulário desse “rapaz” é um sinal da doença que afecta o Brasil. Empresários que suam e correm riscos não gastam assim, especialmente porque desejam crescer e sabem que precisam investir, para além de saberem que têm que se preparar para os tempos turbulentos, que acabam sempre por vir e que agora, mais do que nunca, são iminentes. Quem não o faz e é apanhado de surpresa pela turbulência acaba ficando nas mãos dos bancos, e isso é a morte do artista...

Mas será o rapaz assim tão idiota, ao ponto de não ver isso e adoptar esse padrão de consumo suicida (lembro: ele não é bilionário!)? Creio que não. É idiota, não há dúvida, mas possui o seu “q” de matreiro (ou instinto caçador). Me parece que ele está convicto de que o seu nicho de mercado está garantido, o que significa que o seu mercado é primariamente o dos capitalistas, ou melhor, o dos empresários do capitalismo sem risco (desculpem a redundância), que vivem das bolhas que dão a falsa ideia de prosperidade aos de baixo, nos bons tempos, e os derrubam nos maus tempos. Tirando essa categoria especial, os únicos que gastam suas fortunas assim são os idiotas, e sabemos que são muitos, mas estes não garantem a segurança de um negócio como o do rei do camarote, afinal, desaparecem nos tempos de vacas magras. Esses são destruídos pelas mesmas qualidades que os alçaram. E, como todos sabem, o exemplo vem de cima. Numa sociedade liberal, ainda que numa fase socialista desse mesmo liberalismo, os heróis são os que conseguem amealhar grandes fortunas e o seu exemplo acaba por influenciar os fracos, que, como prova a experiência histórica, constituem a maioria. No vídeo abaixo os senhores podem ter uma ideia da influência que isso tem na sociedade em geral, que por um lado, cultua a opulência, e do outro legitima a inveja:



Ainda há um último ponto a referir (na verdade, infinitos), que é o tipo de consumo que faz o rei do camarote. Ferrari, Gucci, Moet Chandon. Enfim, todos conhecem esse filme. Exaurida a riqueza fácil da feitoria do mundo, nada fica ali para além da frustração. Já a fortuna, continua a enriquecer quem sabe se aproveitar disso, e estes não estão no Brasil (e nem falo dos credores externos). O que não daria para vender luxo aos reis do camarote, e aos seus clientes! Se o fizesse, podem ter a certeza de que chegaria rapidamente ao topo e depois investiria em Rondónia, comprando terras, explorando minas, construindo hidreléctricas, ferrovias e aeroportos. Abriria escolas e convidaria padres eruditos para organizá-las, ensinando o grego e o  latim nos confins da Amazónia, e não esqueceria de embelezar aquela terra, contribuindo para que uma arquitectura local, inspirada no nosso passado, surgisse, deixando para o futuro um testemunho tão eloquente  dessa transformação quanto aquelas cidades tipicamente portuguesas que hoje brilham em meio à flora exóctica  em Minas Gerais e Mato Grosso. E como cereja por cima do bolo: a Ópera! Porém, nesse Brasil liberal/socialista nada disso não é possível. Na ordem liberal/socialista, empreendedor é o rei do camarote.

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