O liberalismo tem os seus reis e imperadores.
No meio de tantos esforços, fica difícil dedicar tempo aos
escritos mais nobres, especialmente porque um blogue exige de alguma maneira um
acompanhamento dos factos quotidianos, ainda que o Prometheo tenha como
objectivo escapar à pauta dos jornais e analisar o presente de forma serena,
focando o que é de facto relevante ao invés de se perder no caos planeado do
submundo das notícias, ou dos blogues pautados pelo mesmo. Todavia, há poucos dias li um texto a respeito da reacção dos
brasileiros a um tipo conhecido por rei do camarote que me chamou a atenção. Para saber do que trata o texto, e quem é o tal “rei”, recomendo a todos um esforço de pouco mais de três
minutos, de preferência em jejum, para que conheçam o material que deu origem
ao texto citado:
O que em primeiro lugar chamará a atenção dos leitores
europeus é a semelhança entre este padrão de consumo e o que observamos nas
nações subitamente enriquecidas pelo petróleo no continente africano, afinal,
isso não se vê na Noruega (que está longe de ser um exemplo, que fique claro,
mas não deixa de ser uma nação com algumas qualidades notáveis). Tal comportamento
perdulário associamos aos filhos de ditadores africanos, magnatas russos, multimilionários
chineses, actores americanos e jogadores de futebol no velho continente. Seja
como for, este padrão de consumo está relacionado com um ganho que exigiu pouco
esforço, ainda que denote algum tipo de talento.
Conhecendo a realidade brasileira, que é o que é e não
adianta descrever, é impossível não questionar a razão de alguns ganharem tanto
e outros tão pouco. É natural que haja diferenças, que em maior ou menor grau
estão relacionadas com o as capacidades dos indivíduos, e as circunstâncias que
os envolvem, mas ao contemplar a oratória do rei do camarote, e o seu
comportamento, é difícil explicar essas diferenças relativas aos proveitos do
trabalho pelo talento, afinal, isso significaria que a população brasileira é
constituída quase que exclusivamente de idiotas. Eu, que vivi por lá metade da
minha vida, posso garantir que os brasileiros são idiotas, como todos os povos,
em vários aspectos da sua vida, porém, isso não inclui a sua capacidade empresarial.
Na minha experiência de vida, não conheci um povo com maior número de
empreendedores natos do que o povo brasileiro. Quanto a Portugal, não fica
muito atrás, mas a armadilha económica em que está - e foi - metido acaba por expulsar os mais
empreendedores pela via da emigração, para não falar do facto de Portugal ser
um “território velho”, onde a civilização conta com pelo menos 2000 anos (estou
a ser muito conservador nessa análise, como podem atestar os arqueológos).
E por falar em idiotice, faço em primeiro lugar uma análise pragmática
a respeito do comportamento do rei: numa nação onde as estatísticas da
violência só perdem para a de alguns países em guerra, especialmente uma que
está a beira de uma revolução comunista e o pensamento de esquerda é
hegemónico, em que o Estado não hesita perseguir os indivíduos mais afluentes
em nome da justiça social (inveja em português “arcaico”), não é este
cavalheiro um grande idiota? Se estivesse na posição dele, pagava pelo
anonimato!
Agora me darei ao luxo de ser um bocado moralista: é certo
se referir às mulheres como se todas elas fossem hetairas em busca de fortuna? É saudável excitar a
inveja nos invejosos pelo prazer idiota de se ser invejado? Que tipo de ser
humano consegue se divertir sabendo que despertar em outros seres tão baixos
como ele os instintos mais baixos imaginários, ao ponto de ter que sair com
dois gorilas para não apanhar? E por falar nos gorilas, como é que esse imbecil
está certo de que pode confiar neles, especialmente sendo um imbecil?
Mas todas essas considerações são pueris quando comparadas
com o que ainda tenho para dizer, e é isso que nos interessa. Para tal, usarei o texto citado para contrapor uma análise
tradicionalista a uma análise liberal, de modo a expor a grande falácia
económica que é o liberalismo demonstrando que o mundo liberal é uma ficção erguida sobre uma realidade que ele está a destruir. Como já disse num outro verbete®, muito do que é afirmado por
todas as escolas económicas liberais é verdadeiro, mas isso não passa de uma
colecção de observações colhidas pela experiência que estão ao nível do
tautológico. Tudo o que os economistas liberais “descobriram” está implícito
nos antigos, que não sentiram a necessidade de elaborar tabelas e desenhos e pois acreditavam que os seus leitores não precisam delas. A respeito disso mesmo fiquei a saber, graças ao meu irmão,
que uma cientista sueca descobriu que os animais têm sentimentos, após vários
anos de estudo, e que há leis que obrigam os estabelecimentos que servem café a terem avisos advertindo o público que o café quente pode causar queimaduras. É mais ou menos disso que estou a falar.
Antes de avançar para o texto, quero fazer mais uma
observação. O conservadorismo brasileiro, tal e qual o português, é
fundamentalmente liberal, distinguindo-se do liberalismo descaradamente
materialista por defender a moral cristã, mas dentro de uma ordem política e
económica liberal. Contudo, há uma grande diferença. Cá em Portugal o tradicionalismo nunca morreu e tem ganho muita força, havendo esperança de que em breve se transforme numa força política activa. No Brasil, o que podemos chamar de tradicionalismo não é um movimento concentrado, se encontrando pulverizado, estigmatizado e marginalizado. Preparei um texto sobre
esse tema e tratarei de o publicar assim que fizer as correcções, afinal, isso
não é urgente. Agora vamos ao texto liberal/conservador que me chamou a atenção:
O autor, em resumo, explica que a diferença entre o que
existe em Rondônia e São Paulo é explicada pelo dinheiro em circulação. Sendo
mais abundante em São Paulo, é natural que São Paulo tenha mais luxos do que
Rondónia, e também mais gente, afinal, onde há dinheiro, há gente. E depois dá uma explicação a respeito da
circulação do dinheiro que em nada difere da keynesiana. O que interessa é
gastar, afinal, o dinheiro circula. Voltaremos a isso, mas antes é preciso
resumir o resto do texto.
Depois, reservando-se ao direito de também ser moralista
(todo mundo pode ser, desde que não exagere), ele explica que o rapaz pode gastar o dinheiro como
quiser e que ele é um “benfeitor”, afinal, os seus gastos sustentam muita
gente. Nesse ponto Ayn Rand bateria palmas! Segundo o autor do texto, é melhor isso do que ser carniceiro do Camboja, comparação que engana quem não fizer uma leitura holística desses factos.
Comecemos por esta última observação. Por acaso, mas só por acaso, esse padrão
de consumo me lembra o observado entre os magnatas monopolistas americanos do
princípio do século XX, e por mais acaso ainda este grupo social foi o maior
investidor na Revolução Russa, e seus descendentes continuam a fazer bons
negócios no mundo comunista.
Voltemos a Rondónia. Ao olhar para o mapa do Brasil,
conhecendo os seus recursos, e a história da humanidade, a pergunta que se deve
fazer é a seguinte: como é que numa
nação praticamente virgem, com um potencial que salta à vista de qualquer um, o dinheiro que procura alto retorno e está
disposto ao risco não inunda jóias como Roraima, que não por acaso são um alvo
primordial das corporações ocidentais e de governos como o chinês? Como é que
essas zonas do Brasil não são os maiores pólos de atracção de gente, o que no
fundo é apenas a continuação do processo histórico do Brasil? Segundo o autor,
as pessoas estão onde há dinheiro. Mas o dinheiro corre para onde existem as oportunidades,
e as melhores estão em Rondónia, onde tudo está por desbravar, do que em São Paulo,
onde quase tudo o que há para fazer já é feito e há vinte milhões de otários vivendo apertados num lugar feio, triste, sobrevalorizado e caro.
Se a lógica do autor estivesse correcta, então seria
impossível explicar a própria existência do Brasil, afinal, quem largaria
Lisboa ou o Minho, ou deixaria a magnífica Índia de lado para lá se estabelecer? Respondo: os
aventureiros e os empreendedores que querem chegar ao topo. Por outro lado, lembremos agora da Europa.
Sabemos que a Europa germânica era pobre, primitiva e não oferecia ganhos imediatos,
levando Augusto, após o desastre de Teutoburgo, a desistir da sua “colonização”.
Caído o Império, sob influência de missionários cristãos e das ordens
religiosas que para as florestas da Germânia se deslocaram, a agricultura prosperou, os primeiros engenhos hidráulicos foram construídos,
o comércio chegou a todas as partes e a indústria floresceu.
Séculos depois da
queda do império, as zonas da Flandres, privilegiadas pela sua posição
geografica e pelos seus ricos solos, agora aumentados pelo esforço de gerações
que aprenderam a construir os diques, técnica desenvolvida também pelos monges, alcançavam o nível de actividade
económica e a riqueza cultural das zonas mais activas de Itália. Acho que estes
dois exemplos servem como contraponto a essa afirmação do autor do texto. Por outro lado, um fenómeno análogo ao que se passa no Brasil se deu nas grandes invasões de bárbaros da História. Esses de facto foram em busca dos locais onde estava o dinheiro, enquanto nos outros casos o dinheiro e as pessoas foram em busca do que estava por ser desbravado.
Dito isto, agora compartilharei convosco o que retirei dessa
matéria a respeito do rei do camarote, que diz muito a respeito das distorções
que encontramos no Brasil, que, no fundo, estão por toda a parte, ainda que
menos intensamente (a não ser nas “feitorias” do mundo). Em primeiro lugar, fiz
as contas. Segundo a revista, o rei do camarote chega a gastar 50 mil reais
numa noite. Será que ele vende tantos carros de luxo assim? É que tal padrão de gasto não se encaixa num mero revendedor de carros, ainda que ferraris e coisas do género. Enfim, este não me
parece o comportamento de um empresário, mas antes de alguém que arranjou uma
posição como empresário.
Levando em conta o tipo de gente que pode comprar
ferraris e carros de luxo dessa gama sem pôr em risco o seu futuro ficanceiro, e a maneira como a política e a economia
se fundem no Brasil liberal/socialista (é assim desde o advento do
liberalismo), não é difícil chegar à conclusão que as conexões é que contam e
que as vendas de carros de luxo são no fundo proporcionais ao
enriquecimento de uns numa economia dominada por monopólios e bancos, em que os
primeiros usufruem das leis e dos contractos públicos, assim como dos
empréstimos amigos do banco estatal de investimento local (BNDES), e os últimos
do défice permanente, que justifica as altas taxas de juro num contexto onde
não existe risco de calote (quando isso acontecer, lá vem o FMI com o dinheiro
do contribuinte das nações que não estão tão mal).
Portanto, mais do que sinal de saúde ou pujança económica, o consumo perdulário
desse “rapaz” é um sinal da doença que afecta o Brasil. Empresários que suam e correm riscos
não gastam assim, especialmente porque desejam crescer e sabem que precisam
investir, para além de saberem que têm que se preparar para os tempos
turbulentos, que acabam sempre por vir e que agora, mais do que nunca, são iminentes.
Quem não o faz e é apanhado de surpresa pela turbulência acaba ficando nas mãos
dos bancos, e isso é a morte do artista...
Mas será o rapaz assim tão idiota, ao ponto de não ver isso
e adoptar esse padrão de consumo suicida (lembro: ele não é bilionário!)? Creio que não.
É idiota, não há dúvida, mas possui o seu “q” de matreiro (ou instinto
caçador). Me parece que ele está convicto de que o seu nicho de mercado está
garantido, o que significa que o seu mercado é primariamente o dos
capitalistas, ou melhor, o dos empresários do capitalismo sem risco (desculpem a redundância), que
vivem das bolhas que dão a falsa ideia de prosperidade aos de baixo, nos bons
tempos, e os derrubam nos maus tempos. Tirando essa categoria especial, os
únicos que gastam suas fortunas assim são os idiotas, e sabemos que são muitos, mas estes não garantem a segurança de um negócio como o do rei do camarote, afinal, desaparecem nos tempos de vacas magras. Esses são destruídos pelas mesmas qualidades que os alçaram. E, como todos sabem, o exemplo vem de cima. Numa sociedade liberal, ainda que numa fase socialista desse mesmo liberalismo, os heróis são os que conseguem amealhar grandes fortunas e o seu exemplo acaba por influenciar os fracos, que, como prova a experiência histórica, constituem a maioria. No vídeo abaixo os senhores podem ter uma ideia da influência que isso tem na sociedade em geral, que por um lado, cultua a opulência, e do outro legitima a inveja:
Ainda há um último ponto a referir (na verdade, infinitos), que é o tipo de consumo
que faz o rei do camarote. Ferrari, Gucci, Moet Chandon. Enfim, todos conhecem
esse filme. Exaurida a riqueza fácil da feitoria do mundo, nada fica ali para além da
frustração. Já a fortuna, continua a enriquecer quem sabe se aproveitar disso,
e estes não estão no Brasil (e nem falo dos credores externos). O que não daria
para vender luxo aos reis do camarote, e aos seus clientes! Se o fizesse, podem
ter a certeza de que chegaria rapidamente ao topo e depois investiria em
Rondónia, comprando terras, explorando minas, construindo hidreléctricas,
ferrovias e aeroportos. Abriria escolas e convidaria padres eruditos para
organizá-las, ensinando o grego e o latim nos confins da Amazónia, e não
esqueceria de embelezar aquela terra, contribuindo para que uma arquitectura
local, inspirada no nosso passado, surgisse, deixando para o futuro um testemunho
tão eloquente dessa transformação quanto
aquelas cidades tipicamente portuguesas que hoje brilham em meio à flora
exóctica em Minas Gerais e Mato Grosso. E como cereja por cima do bolo: a Ópera! Porém,
nesse Brasil liberal/socialista nada disso não é possível. Na ordem liberal/socialista, empreendedor é o rei do camarote.
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