Notas sobre a crise migratória e o Estado Islâmico

Algumas breves observações sobre os recentes acontecimentos:


1. Vladimir Putin, em setembro, na 70ª Assembléia Geral da ONU, após criticar indiretamente os países ocidentais que ajudaram a fomentar o Estado Islâmico, entre outros grupos radicais, profetizou:

Consideramos qualquer tentativa de flertar com terroristas, ainda mais armá-los, uma atitude míope e extremamente perigosa. Isso pode tornar a ameaça do terrorismo global muito pior, espalhando-o por novas regiões do globo, sobretudo se levarmos em consideração que há guerrilheiros de vários países diferentes, inclusive europeus, adquirindo experiência de combate junto ao Estado Islâmico...

2. O vídeo With Open Gates: the forced collective suicide of European Nations, cujas cópias têm sido retiradas de circulação repetidamente pelo Youtube, ganhou uma versão com legendas em português. O vídeo compila imagens e entrevistas sobre a invasão islâmica das nações européias através da imigração. Destaque para o trecho em que Nicolas Sarkozy, o ex-Presidente da França, aparece dizendo (clique aqui para ir direto ao ponto):

Qual é o objectivo? O objectivo é responder ao desafio do casamento interracial (mestiçagem). Não é uma escolha. É uma obrigação. Se o voluntarismo não funcionar para a república, então o Estado entrará com medidas mais coercitivas. Temos de mudar. Por isso, mudaremos!

3. Mais significativo ainda é o trecho final, em que Barbara Lerner Spectre, identificada no vídeo original como fundadora da ONG Paideia - The European Institute for Jewish Studies in Sweden, afirma abertamente (clique aqui):

A Europa ainda não aprendeu a ser multicultural. E eu acho que vamos ser parte da agonia dessa transformação, que tem de acontecer. A Europa deixará de ser as sociedades monolíticas que a constituíram no último século. Os judeus estarão no centro disso. É uma grande transformação para a Europa. Passarão agora a um modo multicultural e os judeus serão ressentidos (sic) devido ao nosso papel preponderante...

4. O Presidente da França, François Hollande, afirmou ontem que seu país está em guerra com o "Estado Islâmico". Mas o que é o "Estado Islâmico" de que tanto se fala? Ele é conhecido também pelas siglas ISIS, ISIL, e, entre outras, Daesh, que seria sua sigla em árabe. O significado, segundo a tradutora de árabe Alice Guthrie:

D.A.E.SH é uma transliteração do acrônimo árabe formado pelas palavras... que formam I.S.I.S em inglês: 'Islamic State in Iraq and Syria', or 'لدولة الإسلامية في العراق والشام' ('al-dowla al-islaamiyya fii-il-i’raaq wa-ash-shaam')... Em árabe, como em inglês, essa frase consiste de seis palavras, quatro das quais a tornam um acrõnimo: 'دولة dowla' (estado) + 'إسلاميةislaamiyya' (islâmico) + 'عراق i’raaq' (Iraque) + 'شام shaam'...

5. Simples, não? Não. Alice Guthrie é tradutora, não cientista política. O "D" de D.A.E.SH, como se lê acima, vem de "dowla", que ela traduz como "estado", mas essa tradução não é muito precisa. No Islã, os conceitos modernos de estado e nação, e, portanto, também o de estado-nação, são inexistentes e, mais do que isso, contrários à fé. 

6. O termo "nação", para nós, está sempre relacionado a uma raça ou a um povo que vive em um mesmo território, sob as mesmas leis, falando geralmente a mesma língua. "Umma", o termo em árabe comumente traduzido como "nação", se refere a algo diferente: a um grupo que possui as mesmas crenças religiosas, independente de viverem em um mesmo território ou pertencerem a raças diferentes. No Islã, todos os muçulmanos do mundo formam uma só "umma". Não é por outra razão que eles tendem a compreender a intervenção ocidental em suas questões locais como algo advindo dos "cristãos", não de americanos, ingleses, franceses, etc.. 

7. Já o termo "dowla", ou "dawla", entre outras transliterações, não se refere ao mesmo conceito que temos de "estado", ou seja, uma organização estável, que ocupa um território e que dá unidade e um destino comum a uma nação. "Dowla" refere-se a qualquer organização política islâmica, mesmo que temporária, e, ao contrário do "estado", é ela que retira sua legitimidade e finalidade da "umma", ou seja, de todos os muçulmanos, e tampouco somente daqueles muçulmanos que vivem em um determinado território (na Síria ou no Levante, como sugere a sigla I.S.I.L. sob um ponto de vista ocidental), até mesmo pelo fato de que uma "dowla" é, diferentemente do "estado", não territorial. 

The Umma and the Dawla: the Nation-State and the Arab Middle East, de Tamim Al-Barghouti, é a melhor referência que eu conheço sobre esse assunto.

8. E o que significa isso? Que, ao declarar guerra ao "Estado Islâmico", Hollande não declarou guerra a um "estado", mas, virtualmente, a toda a "umma", a todos os muçulmanos do mundo, que, potencialmente, na medida em que se considerem legitimamente representados por essa "dowla", podem, seja lá a que nacionalidade pertençam, e sem jamais terem pisado na Síria ou no Levante, tornarem-se combatentes da "jihad pela causa de Alá", uma obrigação religiosa a que todos os muçulmanos estão sujeitos. 

9. Isso torna a crise migratória na Europa e o sucesso do "Estado Islâmico" - ou de qualquer "dowla" que se forme e seja bem sucedida - dois assuntos totalmente correlacionados, por mais que a mídia queira repetidamente desvincular "refugiados" de "terroristas".

A Europa se encontra sobre um barril de pólvora justamente em um momento em que não parece ter muitos líderes em que confiar.